Quem foi Jules Rimet, que deu nome a primeira taça de Copa do Mundo?

Raphael Evangelista
Enciclopédia das Copas
10 min readJun 20, 2022

Jules Rimet não foi apenas um nome qualquer que ficou mundialmente famoso por ser aquele que batizou a primeira taça do Mundial. Seu nome é também bastante importante para a história da profissionalização do futebol e mundial e para a criação da Copa do Mundo. Conheça mais sobre a trajetória dele:

Suas origens

Jules Rimet nasceu em 14 de outubro de 1873, em um pequeno vilarejo no oeste da França (a quase 400 km da capital, Paris) chamado Theuley-les-Lavoncourt.

Ele era filho de um pobre dono de pequeno comércio e teve uma educação bastante rígida.

Desde pequeno Rimet demonstrou talento para a persuasão e foi ainda jovem a Paris iniciar uma carreira em direito, após ganhar uma bolsa de estudos.

Ele era uma pessoa bastante católica, amante de literatura, poesia, música e da natureza. Nunca gostou de política por considerar uma coisa suja e tentava fazer sua parte no mundo pelo esporte. Era praticante assíduo de esgrima e corridas. Considerava o futebol como um espetáculo impressionante.

Sua paixão por competições esportivas ficou ainda mais evidente quando em 1897, mesmo sem nunca ter chutado uma bola, foi um dos co-fundadores do clube Red Star Club, em Paris.

O Red Star é atualmente o segundo clube de futebol mais antigo da França (o primeiro é o Le Havre AC, fundado em 1862, como um time de Rugby).

Um dos valores mais importantes de seu novo clube era a inclusão e o desenvolvimento humano, eles não recusavam membros, independente de suas posições ou classe social.

Indo na contramão da sociedade francesa, que não aceitava o futebol tão bem no início do século, foi Rimet quem decidiu que ele seria um dos esportes praticados no Red Star.

Ele via com bons olhos o crescimento do esporte pela Europa e a forma como ele se espalhava pelo mundo, ficando cada vez mais popular desde seu início nas escolas públicas inglesas, chegando até a recém criada primeira liga de futebol profissional na Inglaterra.

Naquela época os franceses mais ricos não curtiam o esporte e achavam que ele era coisa de pobres, ladrões, atletas profissionais e ingleses.

Mesmo sua torcida sendo majoritariamente alinhada à esquerda e o símbolo do clube ser uma estrela, nada tem a ver com comunismo ou coisa do tipo. A inspiração para o nome da equipe veio da companhia marítima belgo-estadunidense Red Star Line, utilizada pela governanta inglesa que trabalhava para Rimet.

Equipe do Red Star jogando lá no começo do século XX (Reprodução / Instagram)

O trabalho de Jules Rimet no Red Star ajudou a fomentar o crescimento do futebol profissional na França e foi questão de tempo para que ele se tornasse o primeiro presidente da história da Federação Francesa de Futebol em 1919. Após ser parte importante para a profissionalização do futebol em seu país, tornou- se presidente da FIFA, em 1921.

Presidência da FIFA

Uma das características mais marcantes da gestão de Rimet à frente da FIFA foi a união entre os povos. Em entrevista, seu neto Yves Rimet falou sobre as convicções do avô e o descreveu como “uma pessoa humanista e idealista, que acreditava que o esporte poderia unir o mundo”.

Também foi em sua gestão que a profissionalização dos atletas evoluiu. Segundo Yves Rimet: “Diferente de outros de sua época, ele percebeu que pra poder ser verdadeiramente democrático e engajar as massas, o esporte internacional deveria ser profissional”. E acrescentou que o avô provavelmente ficaria bastante chateado de ver como as coisas são atualmente, com o esporte baseado em fazer rios de dinheiro. Algo bem diferente de sua visão.

Jules Rimet em 1920 (Foto: Agence de presse Meurisse)

Jules, diferentemente de outros nomes da época que dominavam a administração dos esportes internacionais, como o Barão Pierre de Coubertin (seu compatriota francês que inventou os Jogos Olímpicos da Era Moderna), não era um aristocrata, veio de camadas mais baixas da população e esse seu crescimento baseado no esforço próprio era algo que ele gostava de levar para os esportes.

Ele imaginava que o futebol recriaria um espírito medieval de “cavalheirismo”, ou seja, ensinaria às pessoas valores de trabalho duro, honestidade, obediência às regras, camaradagem e acima de tudo, fair play.

Rimet acreditava que o esporte era a ferramenta perfeita pra frear o crescimento do nacionalismo tóxico que tomou conta de muitas nações no início do século 19, desde que pudesse chegar a todas as classes sociais.

Criação do primeiro mundial

A primeira vez que surgiu a ideia de um campeonato mundial de futebol entre países foi em 1905, um ano depois da fundação da FIFA. A proposta foi do jornalista francês Robert Guérin, primeiro presidente da FIFA. Mas nenhum país se interessou em participar do torneio, que acabou ficando apenas no papel.

O mais próximo que existia de uma Copa do Mundo na época, eram as Olimpíadas disputadas em sua maioria por atletas amadores. E o futebol ganhava popularidade ao redor do globo, como ficou comprovado quando curiosamente em meio a Primeira Guerra rolou uma partida entre soldados alemães e ingleses, no Natal de 1914.

Jules Rimet era um grande entusiasta da ideia e volta e meia trabalhava para que ela se tornasse realidade, mesmo enfrentando sérias resistências, como da Federação Inglesa de Futebol, que se desvinculou da FIFA depois da Guerra para não estar associada à antigos inimigos do campo de batalha, como Hungria, Alemanha e Áustria.

O primeiro protótipo do que poderia ser uma Copa do Mundo foi na Olimpíada da Antuérpia, Bélgica, em 1920, quando a FIFA assumiu a organização do torneio de futebol no lugar do Comitê Olímpico Internacional. E justamente nesse mesmo ano, Rimet foi eleito para a diretoria da FIFA e no ano seguinte, chegaria à presidência da entidade.

E foi nos Jogos Olímpicos de Paris, em 1924, que a ideia amadureceu de verdade. A grande final (vencida pelo Uruguai) teve mais de 60 mil espectadores. Com o sucesso da competição, o sonho só cresceu.

Logo depois dos jogos de 1924, a FIFA criou um comitê (a pedido de Jules Rimet) para estudar a viabilidade de organizar uma competição nos mesmos moldes. Esse estudo ficou por conta de ninguém menos do que Henri Delaunay, ex-árbitro e então secretário da Federação Francesa de Futebol e que também seria o “pai” da Liga dos Campeões e da Eurocopa, que hoje leva seu nome na taça.

Em 1927, Delauney apresentou suas ideias iniciais e entre elas a da realização da Copa ser a cada quatro anos, intercalando com as Olimpíadas. A ideia foi apresentada no Congresso da FIFA, mas não foi pra frente, principalmente por falta de interessados em organizar a competição.

Vale lembrar que a logística dos anos 1920 era bem menos convidativa a grandes eventos globais por conta de viagens extensas de navio, escassez de comunicação e outras tantas dificuldades do século passado.

Mesmo assim, Jules Rimet não se deu por vencido e ao lado de Delauney começou um trabalho nos bastidores, usando toda sua vocação de advogado e seu espírito de negociante pra poder convencer as federações a apoiar a criação da Copa.

Levou tempo, mas deu certo.

Em 1928, Delaunay trouxe novas conclusões e as apresentou durante o congresso da FIFA que aconteceu em paralelo aos Jogos Olímpicos de Amsterdã, que mais uma vez teve a FIFA organizando o torneio de futebol e foi justamente na abertura da competição que a proposta foi apresentada e aprovada por 23 votos a favor e cinco abstenções (Dinamarca, Estônia, Finlândia, Noruega e Suécia).

No relatório de Delaunay apareceu a proposta de uma competição de seleções de todos os países afiliados à FIFA, disputada em um único país, de quatro em quatro anos.

A experiência com as Olimpíadas de 1924 e 1928 foi boa o bastante para organizar um campeonato aberto também a profissionais e não só amadores, como era o das olimpíadas. Isso contribuiu para criar divergências entre a FIFA e o COI e isso contribuiu ajudou a eliminar o futebol dos jogos de 1932, em Los Angeles. Dois anos depois da primeira Copa do Mundo, em 1930.

Do papel aos gramados, uma longa viagem

Aprovada a criação do campeonato, bastava decidir alguns detalhes bem bobinhos, como…

quem seria o país sede? E quem disputaria a competição?

O Uruguai foi um dos primeiros a se candidatar para sediar o novo torneio. Eles já haviam demonstrado interesse anteriormente ao próprio Rimet.

Pra poder sediar a Copa, o país se comprometia a construir um novo e moderno estádio com capacidade para 80 mil pessoas, além de pagar as despesas de viagem, alimentação e hospedagem de todos que topassem participar.

A favor da celeste pesou o fato de serem atuais bicampeões dos Jogos Olimpicos (1924 e 1928) e ter a celebração do centenário de sua independência no ano de 1930. Mas não seria tarefa fácil, já que muitos países europeus se mostraram interessados em sediar o primeiro campeonato mundial.

Jules Rimet e a seleção da França em 1930 (Foto:
Le Miroir des sports)

Coube ao negociante Jules Rimet conversar com os outros candidatos para abrirem mão e o evento ser na América do Sul, que na época tinha no Uruguai os dois últimos títulos de campeão do mundo. E assim, no Congresso da FIFA de 1929, o Uruguai foi confirmado como a primeira sede do torneio.

Agora vinha outra parte: convencer os países europeus a participarem da competição.

Em 1929, o mundo todo vivia uma séria crise econômica, causada pela quebra da Bolsa de Valores de Nova York e além do custo da viagem, também era uma distância bem complicada. Eram necessários 16 dias de navio para atravessar o oceano atlântico de navio da Europa até a América do Sul.

Como se isso tudo não fosse o bastante, muitos países não permitiriam que seus jogadores ficarem tanto tempo fora de casa e longe de seus trabalhos, já que a maior parte deles eram amadores. Por isso, até o final de 1929 nenhum país estava confirmado na Copa de 1930.

Mais uma vez Jules Rimet encarnou o seu papel de negociador e foi pessoalmente de país em país para conseguir angariar competidores para a Copa do Mundo. Nessa busca, ele se encontrou pessoalmente com o rei Carol, da Romênia, que era grande fã de esportes e demonstrou entusiasmo com a Copa.

Pesou para o sucesso dessa empreitada o fato de Rimet ter experiência como advogado e nas palavras de seu neto: “ser um homem durão, difícil de vencer em uma discussão, porque ele simplesmente não era de desistir”.

Apesar desses esforços, Jules Rimet conseguiu convencer apenas quatro europeus a embarcarem para o Uruguai: Bélgica, França, Iugoslávia e Romênia. Eles se juntaram a outros sete países sul americanos (Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Paraguai e Peru, além do próprio Uruguai), al[em de EUA e México.

Foto: Jean-Yves Guilláin

E então, em 21 de junho de 1930, Jules Rimet, sua delegação da FIFA e as seleções da Romênia, França e Bélgica embarcavam no SS Conte Verde rumo ao Uruguai, em uma viagem de duas semanas que terminaria justamente no dia do primeiro jogo da competição, em 13 de julho.

Nessa viagem, Rimet, também teve a “difícil tarefa” de tomar conta do belíssimo troféu dourado criado por Abel Lafleur. Mas essa é uma história para um outro momento.

Controvérsia políticas em 1934 e 1938

A Copa de 1930 foi para os parâmetros da época um grande sucesso esportivo e comercial. No entanto, 1934 e 1938 deixariam algumas marcas na carreira de Jules Rimet.

Sobre 1934, ainda há quem até hoje acuse o evento de ter sido o grande palco de propaganda do regime fascista de Benito Mussolini, que levou o evento para seu país, pressionou bastante os atletas — tanto de sua seleção quanto rivais — na busca pela conquista e antes das transmissões pelo rádio tocava hinos fascistas, enquanto Jules Rimet e a FIFA ignoravam, o que gerou algumas infundadas acusações de que Rimet teria uma simpatia pelo regime fascista, embora o mesmo fosse declarado democrata-cristão.

Em 1938 a política entraria em campo mais uma vez. O time alemão fazia saudações nazistas antes de seus jogos na competição e a forte seleção da Áustria, que havia se classificado para a Copa acabou não participando por ter sido anexada à Alemanha, que contou com jogadores do ‘Wunderteam’ austríaco no seu elenco após a anexação. Ou melhor, invasão pré-guerra.

Mais uma vez, nenhuma interferência da FIFA e o evento seguiu normalmente.

Vida de Jules depois

Em 1946, como parte da celebração de seus 25 anos como presidente da FIFA, a entidade resolveu homenageá-lo dando o seu nome ao primeiro troféu da Copa do Mundo.

Jules Rimet supervisionou os cinco primeiros mundiais e a última vez em que entregou o troféu para um campeão do mundo foi em 1954, quando deu à Alemanha Ocidental seu primeiro troféu na Suíça. No mesmo ano, quando completou seu 80o aniversário, encerraria o (até então) mais longínquo comando à frente da FIFA e não foi por um acaso que foi nomeado a presidente honorário da Federação. Em seu comando, a FIFA passou de apenas 20 filiados a 85 países membros. Ao todo, ele liderou a entidade por 33 anos.

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Ele viria a falecer em 1956, na França, apenas dois dias após seu 83o. aniversário.

Curiosidades

Jules Rimet foi interpretado por Gerard Depardieu em um filme sobre a história da FIFA, chamado “Paixões Unidas”.

Em 1928 foi feito Cavaleiro da Ordem Militar de Cristo de Portugal.

Aliás, Jules Rimet, também esteve no campo de batalha e foi condecorado com a Croix de Guerre.

Em sua vila natal há uma estátua sua como um astro do futebol, mas Jules jamais sequer chutou uma bola na vida.

Em 1956 ele foi indicado ao prêmio Nobel da paz, mas foi negado pelo juri norueguês. Há quem acredite que o motivo da recusa teria sido o fascismo da Copa de 1934.

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Raphael Evangelista
Enciclopédia das Copas

Escrevo algumas coisas. Já fui redator lá naquele site das listas, adoro pizza, cachorro quente e paro a vida por um mês a cada quatro anos para ver a Copa.