A cor das carrancas

Nhaguere Caoa
Encontro Literário
3 min readJul 15, 2020

Olhar para uma carranca faz alguns sentirem medo. O que é curioso, pois para os carranqueiros, pessoas que esculpem os olhares e dentes das carrancas, elas servem justamente para afugentar algo. Lá no Rio São Francisco, o “Velho Chico”, as barcas estampam a tal figura de madeira na proa de suas embarcações.

Já vi diversas interpretações sobre elas, de norte a sul. A unica constatação que tive é que é arte nordestina, com dúvidas sobre ser coisa de preto ou de índio. Muitas das vezes nordestino é parte das duas etnias, então, no final, tanto faz. Elas são feitas até hoje para espantar o mal sobre os pescadores e afugentar maus espíritos. Engraçado, maior parte das almas encarnadas que fogem de carranca são brancas. Tá aí a comédia. A cruz do cristo ensaguentado não causa “medo” para os brancos, entretanto a figura animalesca de madeira causa.

Medo é parte do que nos faz humanos. Quando o primeiro ser humano cruzou o desconhecido ele sentiu medo. Medo nos protege do desconhecido. Nos faz ficar atentos. Medo faz que a criança, já desenvolvida, tome cuidado ao se aproximar de animais que nunca viu.

Existem quatro respostas biológicas para o medo: Luta, fuga, congelamento ou desfalecimento. Entretanto, só sentimos medo quando estamos em situação de perigo. As vezes um vulto na rua alerta nosso corpo sobre uma possível situação de perigo, na mesma hora damos uma das quatro respostas, sentimos medo. Nosso corpo se vira, pronto para reagir e “era só um gato”. Nessa hora respiramos aliviados. “Ufa, não tem mais com o que se preocupar”, o medo passa.

Durante nosso desenvolvimento a gente começa a aprender a hora que podemos respirar aliviados e a hora que realmente há perigo. Uma carranca na rua não apresenta perigo mas mesmo assim muita gente olha torto para elas e diz não gostar por ser coisa do desconhecido. Melhor pontuando, muita gente teme carrancas por serem coisas de pretos ou de indígenas, olham para elas e falam que é coisa do diabo.

Ora, para essa gente até parece que o diabo é brasileiro. O tinhoso para eles é dono da arte, dos sabores, dos prazeres e das cores. Se for anotar tudo que colocam nessa lista veremos que não é o Deus embranquecido que é brasileiro, o diabo que é. Pessoas assim acham que Jesus é branco e o diabo é preto, temem o diabo e gostam de ver nele tudo aquilo que não as pertence, o Brasil não as pertence.

Mas a carranca regional nada tem haver com diabo. É arte nordestina, é folclore, é brasilidade. É coisa da nossa gente. O medo que esses outros sentem não é medo é preconceito. É racismo estrutural, corroborado pelos donos do poder e pela mídia.

Se ligarmos os pontos, veremos que essa prosa tem uma moral: falta carranca em terra nacional. Proponho uma carranca em cada casa, para espantar o preconceito e afugentar a gentalha. Ai como eu queria, abrir mão da cor dos Bragança e colocar na bandeira a cor das carrancas.

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Nhaguere Caoa
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