diário fictício dos anos 70.

Leandra Diamor
Encontro Literário
3 min readFeb 23, 2021
Photo by Les Anderson on Unsplash

15 de março de 1970.

Te escrevo para que você lembre de tudo, pedacinho por pedacinho, sem deixar nada para trás, porque eu sei que uma hora ou outra você vai começar a esquecer dos detalhes e os detalhes são extremamente importantes, bem sei também que a vossa senhoria se distrai tão facilmente quanto uma criança de três anos que observa o cair das folhas em uma tarde de Outono, e é por isso que decidi hoje registrar tudo o que está acontecendo ao meu redor, para que você se lembre pelo menos até o fim de sua vida.

Faz alguns dias que eu olho para a janela do quarto em busca de vislumbrar na casa ao lado a presença de Malu, ainda não descobri se é Maria Luiza ou Maria Lúcia. Tenho certeza de que você ainda se lembra dela, a jovem que é minha vizinha, tem os olhos grandes esverdeados, uma cara de Sol, mãos pequenas, boca grande e pele preta que reluz.

Você deve se lembrar também dos pais dela, um professor português e uma mulher que é dona de casa e costuma cuidar dela e dos quatro irmãos mais novos, bem, devo registrar que o pai de Malu não volta para casa fazem três meses mais ou menos, e Malu parou de ir a escola, por isso todos os dias eu me pego olhando para a janela de seu quartinho, mas até então também não a vejo mais, nem no quarto, nem na rua, nem em lugar algum, não havia sequer vestígios de sua voz cortando o ar no meio da noite.

Acho que sempre tive uma espécie de inveja de Malu, desde nova aprendi a admirar seus risos soltos e nunca entendi o porquê ela era tão feliz assim, sempre esbanjava uma espécie de felicidade que eu jamais consegui alcançar, uma espécie de luz que minh’alma nunca sonhou em ter para si. Mas acho que é uma inveja um tanto boa, entende? Eu sempre desejei que ela continuasse sendo assim, porque eu me alimentei todos os dias de seus raios, como se eu fosse alguma planta miúda que busca o Sol incansavelmente.

De alguma forma, eu era tão nova para entender o que eu sentia que tudo se tornou uma confusão absurda na minha cabeça, e meu peito inquieto acompanhou essa confusão, as coisas sempre pareceram tão erradas para mim, os meus sentimentos pareciam errados, meus desejos pareciam errados, e eu estaria mentindo se dissesse que já não me sinto mais confusa, pelo contrário, a confusão ainda esmaga meu ser, meu coração não sabe para que direção correr e isso me cansa, estou tão cansada desses sentimentos que só me resta deitar e morrer um pouquinho.

O sumiço de Malu faz com que eu me sinta solitária de alguma forma, mesmo que não fossemos tão próximas nesses últimos anos. É um sentimento estranho, nutri tanto carinho por uma amizade antiga que mesmo quando a vida nos separou, esse carinho continuou, acho que todo mundo se sente assim alguma vez na vida, não é? Aprendi um tanto cedo que a vida separa as pessoas, de uma forma ou de outra.

Ainda espero ouvir a voz estridente de Malu a percorrer a rua, com um alto estrondo enquanto os carros dos patrulheiros estão passando para ver se há alguma ameaça à solta, mas agora apenas ouço o barulho dos carros.

Esse é um capítulo do meu livro “Ainda Sobre Flores” disponível na plataforma wattpad, para ler é só clicar aqui.

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