A representatividade que emerge dos pequenos atos de mulheres fortes.
Arte é a possibilidade de explorar as vontades mais inconscientes com licença poética. Dialoga com o que há de mais abstrato em nosso âmago. Quando falamos de uma arte que faz parte da nossa história, tudo se torna mais real, palpável e possível.
A Palhaça Xamego, humorista transformista, mulher e negra, tem sua história contada pela visão da neta, Mariana Gabriel, que carrega em si a essência da avó e a vontade de representar tudo aquilo que foi e que é a arte circense brasileira.
Mas retratar apenas a arte circense torna a experiência de conhecer a história de Xamego muito ampla, quando precisamos fazer uma análise mais micro da experiência de transformação visual, considerando o contexto histórico onde essa palhaça se apresentava. Ao considerar que uma mulher utilizava-se da leitura masculina da sociedade para fazer aquilo que amava e interpretar um personagem que acreditava, fiquei impactada por um fio que me conectava à ela: a performance da feminilidade. Ou a falta dela, no caso.
Simone de Beauvoir deixou uma das frases que mais proporciona ao movimento feminista interpretações: Não se nasce mulher, torna-se. Na minha interpretação e conexão com a experiência trazida por Mariana de sua avó, tornamos-nos mulher em uma sociedade que nos mutila aos poucos meses de idade ao colocar um brinco, marcando ali nosso primeiro ato feminino.
Aos poucos fomos limitadas através de discursos da medicina e da psicologia que a conduta feminina deveria ser normatizada, ensinando os espaços que poderíamos ocupar e como deveríamos ocupá-los. De maneira silenciosa, sensível, educada e polida, sempre prestativa e emocional. Nossas roupas, nosso cabelo, como nos portamos também foi estabelecido, afinal nosso corpo feminino é delicado e suas curvas devem ser realçadas.
“A sociedade não aceita a mulher, o “ser humano mulher”. A sociedade aceita a feminilidade, (…) cobra a feminilidade” (Luiza Meira)
A Palhaça Xamego sabia disso, e foi justamente vivendo as cobranças da feminilidade que soube como criar-se à imagem de seu oposto, sendo capaz de exercer sua arte e continuar a tradição familiar circense interpretando um personagem masculino. Talvez ela não entendesse a dimensão social do seu ato de esconder seus seios, desenhar um bigode e vestir suas roupas largas, e nem mesmo tinha como objetivo fugir da sua feminilidade rotineira, mas não consegui evitar de pensar na força e importância histórica da Palhaça Xamego para que eu pudesse entender quem eu sou hoje e porque eu me mostro para o mundo da maneira que sou.
Em certo momento me vi pulando a sessão feminina das lojas de roupas e sapatos e indo direto para a masculina; depois minhas maquiagens saíram do meu guarda-roupas e deixei para minha mãe fazer um uso melhor (ou mais frequente, rs!) desses itens. Essa mudança não foi tranquila e tampouco constante. Os olhares, os questionamentos e até mesmo os (des)incentivos familiares tornavam os esse processo lento e inconstante. Me perguntava com cada vez mais frequência: quem eu era e, principalmente, quem eu queria ser dali em diante. O distanciamento da performance da feminilidade me fazia menos mulher? Acreditei em muitos momentos que sim.
A experiência e a vivência me mostrou que eu não era capaz de ser menos mulher, pois a notícia dada aos meus pais durante um ultrassom de que eles teriam uma menina já determinou muitas questões na minha vida que me impediriam de ser menos mulher. Mesmo que a transexualidade fosse uma possibilidade em algum momento, a leitura social e familiar da minha biologia seria perpetuada e reafirmada por muito tempo.
“Eu não me pareço com um homem, e nada vai me fazer parecer um.
Sou apenas uma mulher não-adulterada. Eu escolhi a mim mesma ao invés deles, e escolhi outras mulheres ao invés deles. Se isso fizer com que os homens me odeiem, que seja.
Eu sou mulher, e eles vão me odiar de qualquer maneira.” (Laura Couto)
A experiência de Xamego foi marcante em aspectos históricos do circo, pois minhas vivências com essa arte sempre foram em circos muito comerciais. Portanto, foi importante conhecer a realidade, tradição e a relevância do circo na construção da história e da arte brasileira. Ao mesmo tempo que mergulhar na coragem da Xamego, me inspirou a reconhecer meu eu artístico e de resistência, e reconhecer que minha existência, que renega imposições estruturais e sociais, é um ato tão bonito que posso considerar como minha arte.