Arte circense e arte drag: um diálogo possível

Maria Eliza Alves é o nome da primeira mulher negra de que se tem registro no Brasil a fazer a arte da palhaçaria. Não como uma palhaça, mas como um palhaço, já que, na década de 40, existiam apenas homens palhaços. Para Maria Eliza, a primeira barreira social já estava imposta: a barreira do gênero.

Maria Eliza Alves

A década de 40, no Brasil, era mais engessada em preconceitos étnicos e de gênero do que hoje, dificultando a autonomia de pessoas negras, de mulheres e, principalmente, de mulheres negras, como era o caso de Maria Eliza.

Crescendo no meio circense, seus dotes artísticos se desenvolveram intensamente, absorvendo o que o ambiente tinha a lhe oferecer. Filha do proprietário do Circo Guarani, um dos maiores circos itinerantes nas décadas de 20 e 30 no Brasil, Maria Eliza viajou pelo país e conheceu muito do extenso território nacional.

O circo itinerante, ao vagar pelo Brasil, importava e exportava as culturas locais e regionais em uma época anterior à internet, que também cumpre esse papel nos dias de hoje. O próprio nome do circo, Guarani, remetia à identidade nacional brasileira e alguns de seus números apresentavam muitos elementos culturais formadores do Brasil: a apresentação da peça “A paixão de Cristo”, revelando a base cristã que formaria o pensamento coletivo nacional da época, as apresentações de músicos sertanejos e regionais, como Tonico e Tinoco e Luiz Gonzaga, dentre outros.

Não é coincidência que o dono de um circo com tantos elementos nacionais fosse um homem negro: João Alves. O Brasil, tendo sido um país escravocrata, tem sua produção artística intrinsecamente ligada à produção artística negra, já que é através da arte que se obtém, também, um meio de expressão política. Contra todas as expectativas e estatísticas vigentes, João Alves era o proprietário do circo em uma época em que pessoas negras não costumavam nem ser artistas circenses.

João Alves, proprietário do Circo Guarani

Acontece que, seguindo as convenções sociais que eram base da cultura nacional, até o circo possuía políticas machistas — e o público, racistas. Quando Maria Eliza tentou ser palhaça viu as barreiras da etnia e do gênero no conservadorismo dos administradores, seus próprios familiares, receosos da reação do público ao ver uma palhaça mulher e negra. Afinal, o palhaço tende a ser extrovertido, malandro, espontâneo, íntimo do público e nada disso era esperado de uma mulher, segundo a ideologia de gênero vigente na década de 40.

Mas o que fazer para ultrapassar essas barreiras? Utilizar tudo o que aprendeu no circo: a flexibilidade de contorcionistas e a coragem de domadores para ludibriar, feito mágica, o público e mostrar sua arte de palhaçaria. Tudo isso com ajuda de maquiagem e através da arte da palhaçaria — e, sem saber, também da arte drag.

Drag kings da microssérie britânica Toque de Veludo

A arte drag está em sua melhor fase comercial hoje em dia, tendo conquistado um nicho do mercado através das drag queens cantoras no Brasil, como Pabllo Vittar, Glória Groove, entre outras. Mas o que pouco se sabe é que, no século XIX, a arte drag era moda nos teatros europeus com os drag kings, isto é, mulheres que se travestiam de homens e atuavam em números, muitas vezes cômicos. A microssérie britânica Toque de Veludo conta um pouco disso sob a ótica de uma mulher do interior que, ao se apaixonar por outra mulher que atuava como drag king, acaba indo para a capital londrina atuar como drag king junto com sua amada.

Voltando ao Brasil da década de 40, Maria Eliza, de modo perspicaz e talentoso, cria um personagem masculino para exercer sua arte: o palhaço Xamego.

Palhaço Xamego

Xamego era um palhaço, no masculino. A maquiagem do rosto era branca. Maria Eliza encarna um personagem que detém os privilégios de que ela precisava para atuar. De quebra, ainda envolve o público em um mistério, popularizado através da canção interpretada por Luiz Gonzaga:

“Todo mundo quer saber
O que é o Xamego
Ninguém sabe se ele é branco
Se é mulato ou negro”

O que ninguém sequer podia imaginar é que, além da etnia, não sabiam também qual era o verdadeiro gênero de sua intérprete, tamanho o talento de Maria Eliza.

A subversão do lugar de pessoas negras na arte circense.
A subversão do papel da mulher no circo (e na sociedade).
A subversão dos papéis de gênero.

A arte de Maria Eliza e do palhaço Xamego parece inocente, mas questiona e, ao subverter as normas sociais e envolver o público, cumpre seu papel de arte. Seu legado persiste hoje com o domínio da arte da palhaçaria também por mulheres e por pessoas negras. Viva, Xamego!

Referências

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