O sujeito da arte e a arte do sujeito: a perspectiva da vivência na expressão artística
A arte é uma forma de expressão. Algumas pessoas acreditam que ela seja inerente ao ser humano, enquanto outras acreditam que seja aprendida socialmente. De todo modo, diz-se que, através dela, os seres humanos encontram um canal para expressar suas emoções e sentimentos. Nem toda obra de arte é exposta pelo seu artista, mas isso não tira seu caráter de expressão. Quando exposta, a obra de arte tende a gerar impressões no público, seja de deslumbramento, repulsa ou indiferença que leve ao questionamento.
Com o passar das eras e o desenvolvimento da sociedade em hierarquias e organizações coletivas, a arte ganhou um status relevante exatamente por sua capacidade de despertar belas emoções e, também, por gerar questionamentos, o que poderia ser usado pelas estruturas de poder vigente ou até mesmo ameaçá-las. Portanto, a arte sempre teve um papel de aliada ou de inimiga dessas estruturas, sendo apropriada pelos sistemas e criando a profissão artista, geradora de renda.
Quando se fala em arte, muitas vezes se fala em dom. Entretanto, fala-se também em técnica, o conjunto de saberes acumulados na história da humanidade para melhor domínio e produção das artes. Surgem as academias de arte, cuja função é justamente a de passar esse conjunto de saberes teóricos, técnicos e históricos. As academias naturalmente estão dentro da lógica da organização social. Por mais que formem artistas que poderão estar aptos a questionar as estruturas de poder, as próprias academias estarão sujeitas a essas estruturas e ao que elas pregam. Sendo assim, a arte em si mesma enfrenta contradições, mostra-se imperfeita e questionável, transforma-se, pois essa é sua essência.
Um exemplo disso é o questionamento que surge atualmente, feito por artistas contemporâneos, a respeito do racismo estrutural no Movimento Antropofágico, iniciado na década de 1920, há quase 100 anos, revelando o caráter contraditório, transformador e mutável da arte. A análise não é feita pautada simplesmente de modo individual nos artistas que criaram o movimento, e sim em toda a estrutura dentro da qual tal movimento ocorreu e na maneira como ocorreu. Mas, antes de falar disso, vale a pena refletir sobre o contexto anterior que gerou o movimento.
A partir da chegada dos europeus, a maior parte da história do Brasil se dá sob regime escravocrata. Sendo a arte um reflexo da sociedade, a representação de pessoas não brancas, em especial a de pessoas indígenas e negras, era estigmatizada. As academias e elites eram compostas quase completamente por pessoas brancas, então o racismo (velado ou não) era comum nas representações artísticas. Embora houvesse muitos artistas negros (conforme elencado por Negro Jorgen), suas obras teriam mais dificuldade para ganhar o status necessário de reconhecimento para adentrar o grupo de obras-primas no país. O racismo no Brasil se mostra tão forte a ponto de artistas negros que atingiam esse lugar serem retratados como se fossem brancos, como o caso do escritor Machado de Assis.
Assim, muito do que se tem de representação dessas pessoas até o século XX é feito por pessoas brancas, de elite, a quem era dado voz para dar o tom do discurso que quisessem, fosse esse discurso conservador ou não. Como consequência, ocorria o apagamento da representação de pessoas não brancas ou então uma representação distorcida delas.
Na década de 1920, um grupo de artistas e intelectuais criou o Movimento Antropofágico, cujo objetivo era promover a deglutição do “outro externo” (culturas europeia e norte-americana) e do “outro interno” (culturas dos ameríndios e dos descendentes africanos, europeus e orientais das américas).
Embora a teoria promovesse a reflexão sobre as diversas culturas que formavam a identidade multiétnica brasileira, a prática continuava perpetuando o racismo estrutural, uma vez que os agentes do movimento eram, como sempre, artistas brancos; às pessoas não brancas que compunham o “outro interno” coube, mais uma vez, o papel de “tema, ou um objeto, sem uma voz”, segundo o artista Tiago Gualberto.
O Brasil é um país onde “a censura chegou antes da imprensa, do teatro e das bibliotecas”, conforme afirma a socióloga Maria Cristina Castilho Costa, isto é, onde havia (e há) um alto controle sobre o tipo de informação ou mesmo de cultura que teria o privilégio de ser autorizado no país. A população não branca brasileira, principalmente a população indígena e negra, foi privada de ter voz na maior parte da história do país a partir da chegada dos europeus. Sendo a arte um reflexo da sociedade, essa privação de voz se deu, também, no âmbito artístico em diversas formas de distorção, de apagamento e de silenciamento (intencional ou não, mas consequente das estruturas sociais que formaram o país) até chegarmos aos dias de hoje.
Com cada vez mais pessoas negras e indígenas ocupando espaços nas academias e nos ambientes artísticos, essa denúncia ganha mais alcance para reflexão atualmente: se a arte é uma forma de expressão, ironicamente é difícil de se observar, na história do Brasil, agentes não brancos se expressando, artisticamente ou não. Ainda é muito contemporâneo o movimento em que esses agentes não brancos saem do local de objeto de estudo e passam a ser um sujeito retratando suas perspectivas de mundo e de si mesmo, o que a filósofa Djamila Ribeiro chama de “lugar de fala”.
Vale sempre lembrar, segundo Djamila Ribeiro, que não se deve confundir “lugar de fala” com “representatividade”. Todas as pessoas possuem um “lugar de fala”, que é a posição social que se ocupa dentro da estrutura de poder em determinada sociedade. A partir do momento em que artistas negros ganham voz dentro de uma estrutura que os silenciava, ocupando um lugar de sujeito (e não mais de objeto), a perspectiva de que qualquer indivíduo possui um local específico de fala, sem que haja uma voz considerada universal, torna-se mais evidente — no caso brasileiro, coloca-se em cheque a universalidade da voz do homem branco.
No que diz respeito à produção artística brasileira, pessoas negras parecem estar ganhando mais espaço e reconhecimento, seja através da divulgação pela internet, de exposições em museus brasileiros e internacionais (sendo o Museu Afro talvez o maior expoente da temática racial no Brasil) ou das discussões que começam a surgir nos ambientes artísticos e acadêmicos. Wilson Tibério, Rosana Paulino e Lais Mathias são apenas alguns nomes de artistas negros que convidam cada vez mais à reflexão do tema através de suas obras.
Referências
https://www.geledes.org.br/pintores-negros-contribuicao-negra-a-arte-brasileira/
http://agencia.fapesp.br/exemplo-de-racismo-na-pintura-brasileira-/27210/
https://news.artnet.com/art-world/tarsila-part-ii-1238654