Por que a educação e a espiritualidade precisam conversar?

Téia Capitanio
En-ducar
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5 min readMar 31, 2017

É inegável que no último século a humanidade rompeu continuamente suas barreiras do conhecimento racional e científico. Fomos à lua, diminuímos as distâncias geográficas, dissecamos o corpo humano, programamos computadores, embalamos e refrigeramos os alimentos e prolongamos a vida biológica. Nestas conquistas, fomos colocando a razão como função dominante de nossa interação psíquica com o mundo e a ciência como detentora — quase que única — da verdade. Na exacerbação do saber científico, construímos custosas barreiras entre o indivíduo e o coletivo, entre um território e outro território, entre uma religião e outra, entre o ser humano e a natureza, entre a Terra e o Cosmos.

Por criar separações ilusórias e por nos fazer perceber separados do que nos é externo, o avanço científico e industrial não proporcionou à humanidade a mesma proporção de avanço na felicidade, na paz, na espiritualidade e na plenitude da vida humana. Dispomos de saber e recurso para resolver os principais desafios contemporâneos, como a fome, o analfabetismo, a violência e a depressão, mas não fomos capazes de tal e até então temos falhado em dissolver os sofrimentos humanos. Em alguns casos, pode-se afirmar que criamos novos conflitos, novas doenças, novos sofrimentos. O avanço nos níveis de inteligência cognitiva não necessariamente nos tornou seres humanos melhores. Não avançamos na mesma proporção na relação com o nosso corpo, na compreensão e gestão de nossas emoções, no desenvolvimento de nossas faculdades mentais e na sintonia com o mistério do que nos transcende. Compreendemos o sistema solar, mas não compreendemos o nosso universo interior. Expandimos os poderes, mas não expandimos nossa consciência. Comprovamos a origem da vida, mas não encontramos o sentido da vida.

Somos condicionados desde muito pequenos a nos perceber como seres separados da natureza e do cosmos, somos estimulados a colocar a razão como aspecto superior à emoção, intuição e sensação, aspectos para os quais muitas vezes não somos nem apresentados. Somos orientados a olhar mais para fora do que para dentro de nós mesmos. Sentadas enfileiradas em carteiras por horas, respondendo a sinais sonoros que tocam em intervalos temporais, as crianças conhecem muito cedo na rotina escolar os padrões que ditam a sociedade descrita acima, pautada pela autoridade, pela razão, pela produtividade, pelo controle e pela separatividade.

O sistema de educação contemporâneo, pautado em influências da era mecanicista industrial, é orientado para a formação para o trabalho e organizado de forma conteudista e padronizada. Este modelo muitas vezes não aborda o ser humano de forma integral, desconsidera a diversidade e unicidade de cada criança, não trabalha o autoconhecimento e gera conflitos internos, problemas de aprendizagem, distúrbios emocionais e stress nas crianças e adolescentes. Estes padrões mentais, físicos e emocionais desenvolvidos na infância serão carregados para toda a vida, gerando desafios futuros para o equilíbrio e felicidade destes seres.

Seja em casa ou na escola, desde a tenra infância, a criança é apresentada a modelos de aprendizagem baseados na punição e na recompensa, que reforçam o medo, tolem a criatividade e descontroem o desejo genuíno e livre de aprender e de evoluir. Nestes modelos, muitas vezes não há espaço para o desenvolvimento espiritual e para o autoconhecimento.

Se na educação está a causa e a consequência das normoses contemporâneas é também nela que mora o convite para um novo desenho possível. É a educação que carrega o florescer de um novo ser humano, que permitirá um novo desenho de sociedade. Para tal, faz-se extremamente necessário discutir o papel da educação, investigar novas alternativas, refletir sobre a concepção de ser humano e de criança, e dar luz a novas e existentes práticas pedagógicas que favoreçam o desenvolvimento integral, espiritual e o autoconhecimento.

O termo espiritualidade desperta interpretações e um imaginário muito diverso. É importante tirarmos os pré-conceitos e os desentendimentos para pensarmos a espiritualidade na educação. Segundo Lisa Miller — PhD e Professora de Psicologia e Educação na Universidade de Columbia — espiritualidade é um sentimento interior de conexão com um poder superior a si mesmo, independente do nome que se dê a ele (natureza, universo, cosmos, Deus, alma, etc). Na visão dela, espiritualidade contempla reconhecer este poder como amoroso e orientador e estabelecer um relacionamento e um diálogo com esta presença sutil. Já o filósofo, escritor e educador indiano, J. Krishnamurti, coloca o desenvolvimento espiritual como desenvolvimento da liberdade e autoconhecimento. Segundo o filósofo, entender a vida é entender a si mesmo, entender nossa relação com as pessoas, com as coisas e com a natureza. Krishnamurti afirma não haver existência sem relacionamento e sem autoconhecimento todo relacionamento gera sofrimento.

Sendo assim, podemos entender espiritualidade como o processo de conhecer a si mesmo e reconhecer-se conectado com uma força orientadora que transcende a si.

Facilitar a escuta interna e auto-observação dos alunos me parece um caminho certeiro para o desenvolvimento da empatia (ao reconhecer a própria complexidade interna, o indivíduo identifica e compreende melhor o universo do outro), da resiliência, da inteligência emocional, das habilidades de diálogo e da capacidade criativa. Habilidades estas que serão demandadas ao longo de toda a vida. Perceber-se pequeno perante a força orientadora que transcende a si também pode ser valioso para o desenvolvimento da humildade, da consciência social e ambiental, do amor, do respeito, da colaboração. Virtudes que muitas vezes carecem nas relações adultas e atuais. Esta percepção (de conexão com algo maior), me parece uma consequência natural da escuta interna. É uma sensação que só faz sentido quando vem de dentro, e não pode ser imposta externamente.

Chamemos de espiritualidade, de auto-conhecimento, de educação integral, de educação holística, educação transpessoal, pedagogia da inteireza, educação para valores humanos, o nome não importa. A questão é a educação pode considerar uma concepção de homem e de criança ampliada, e pode estimular o seu desenvolvimento na inteireza do ser. Este é um processo natural do desenvolvimento infantil, não exige esforço para estes pequenos-grandes seres. O nosso cuidado tem que ser em tirar os nossos condicionamentos, limitações, medos e dualidades do caminho de descoberta de mundo que a criança está vivendo. Deixá-la crescer um pouco mais livre dos condicionamentos e um pouco mais conectada consigo mesmo, e consequentemente com o mundo.

Quem sabe um olhar ampliado e integrado sobre a criança não permite florescer um novo ser humano? Quem sabe um novo ser humano não permitirá uma nova sociedade?

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Téia Capitanio
En-ducar

Investigadora curiosa sobre a educação para a inteireza do ser.