O Fado de Cthulhu

Na distopia inconstante do futuro, vamos derrotar Cthulhu com um sistema de linhas do tempo melhor do que o de Avengers: Endgame.

luiz buscariolli
Engrenagens
Published in
8 min readJun 1, 2020

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Foto minha mesmo, tirada posteriormente pra compensar a anterior

Sim, já é notícia velha na gringa, mas merece nossa atenção no meio lusófono-tupiniquim: Vamos falar de Fate of Cthulhu.

Das entranhas tentaculares da genialidade doentia de H. P. Lovecraft vêm, ressignificados, os mitos de Cthulhu e os demais Grandes Antigos.

O jeito mais simples de se explicar como o jogo se difere de um RPG lovecraftiano mais tradicional é o seguinte: pense que Cthulhu é como a Skynet, de O Exterminador do Futuro. Esse é o rolê.

No fundo o jogo é sobre viagem no tempo, especificamente em conseguir impedir a ascensão dos Grandes Antigos que levam à destruição do mundo e ao esfacelamento das estruturas sociais como as conhecemos.

Mas Busca, eu não gosto de RPG de terror, Lovecraft não é minha vibe :/

Aí que você se engana, meu caro leitor desavisado. Fate of Cthulhu não é um jogo de terror – a menos que você queira que seja um. Ação, Aventura e até Comédia funcionam muito bem com a proposta do jogo, ele realmente areja muito bem a mitologia que, convenhamos, às vezes tá com uns ares meio viciados — afinal, é quase uma aventura pronta, depois que você sabe muito osbre a mitologia o mistério e o charme vão embora.

Mas o que realmente muda de um jogo tentacular normal pra esse então?

São algumas coisas pequenas, mas que são muito legais pro jogo. Primeiro, insanidade? Pode deixar essas regras de lado, não têm esse tipo de loucura no jogo. Ao invés disso são mecânicas de corrupção: seu personagem possui quatro marcadores, o “Relógio”, que suporta até 4 pontos de corrupção, que são ganhos sempre que você usa tecnologias, magias ou têm contato com algo dos Grandes Antigos. E aqui vale citar um trecho do livro, com minha tradução:

Em Fate of Cthulhu, nós estamos nos afastando da representação dos efeitos dos Grandes Antigos e de sua laia como “insanidade” ou outra forma de doença mental por padrão. Preferimos no entanto chamar tais efeitos de corrupção e propor uma ampla variedade de meios em que tal efeito pode manifestar-se nos personagens. Você nunca será obrigado, como Jogador ou Mestre, a retratar um personagem com aspectos corruptos como sendo mentalmente doente, “ter ficado louco”, ou qualquer coisa do tipo.

Todavia, nós sim reconhecemos que a ficção e jogos Lovecraftianos incluíram o sofrimento de traumas mentais como um custo ao engajamento com os mitos. Caso queira expressar a corrupção de um personagem com o desenvolvimento de um trauma ou doença mental, nós reconhecemos que essa é uma escolha válida consistente com o gênero. Dito isto, nós nos sensibilizamos com o fato de que os RPGs não possuem um bom histórico em representar doenças mentais bem ou tratar pessoas com problemas mentais com respeito. Nos esperamos que você também seja sensível à isso e oferecemos os seguintes conselhos caso queira incorporar isso ao seu jogo sem, francamente, ser um c*zão a respeito.

Em seguida, eles basicamente falam pra não diagnosticar, não tratar como punitivo e não tratar como algo exótico.

E quando eu falo que não há loucura no jogo é por ele te dar opção de interpretar como loucura ou não, você pode ganhar um terceiro braço tentáculo ou coisa assim ao invés de assumir a corrupção como uma insanidade.

É louvável o esforço que a Evil Hat colocou para poder tornar o jogo mais inclusivo e pra romper com visões ultrapassadas que ainda estão no mundo RPGista. Não vou dizer com toda a certeza do mundo que ele vai envelhecer impecavelmente bem, mas que vai ser melhor que alguns como Mulheres Machonas, ah com certeza vai.

Entrando em termos um pouco mais mecânicos do jogo, você pode ter percebido que a regra de corrupção define que, quando seu relógio enche, algum de seus aspectos é corrompido, mas o que é um aspecto?

Se você não jogou Fate ou nenhum sistema derivado dele é facilmente compreensível sua confusão, mas vamos lá que lhe explico: Ao invés de se ter atributos e classe, como em D&D, Pathfinder ou Tormenta, seu personagem tem como base seu conceito (ou aspecto principal), sua dificuldade, seu vínculo e os demais aspectos que o definem.

E como são esses aspectos, tem uma lista pra você escolher?

Não! São frases que definam seu personagem, e que possam ser utilizadas tanto para lhe conceder vantagem ou desvantagem em algo. Coisas como “O Fundo de uma garrafa me traz paz” ou até “Sou carioca, pode confiar” são aspectos possíveis. Você pode ganhar vantagem em testes se estiver bêbado ou pode sofrer desvantagens se estiver a tempo demais sóbrio, assim como ser carioca pode te bonificar pela sua confiança ou te prejudicar pelo excesso dela, essa é a vibe.

E você ou o Mestre utilizam-os para irem moldando o jogo, modificando as cenas e criando vantagens e desvantagens.

Além disso, assim como a maioria dos RPGs, o sistema conta com as tradicionais perícias (mas nada de cthulhu mythos aqui, usasse lore). Distribuídas em um belíssimo esquema de pirâmide, você começa com +4 em uma, +3 em duas, +2 em três, +1 em quatro e +0 nas restantes.

E onde esses bônus entram? Nas rolagens apropriadas! Você pode usar uma perícia para atacar, defender, superar (um obstáculo) e criar vantagem – dependendo da perícia, claro.

Quando for o caso, você pega 4 dados de seis lados especiais, com duas faces limpas, dois com + e dois com - lança-os, soma o resultado e adiciona os modificadores. Se você tirasse por exemplo um [+] [+] [-] e [ ] você passaria, dois +, um - e 1 nada = 2–1+0= 1, que é o mínimo que você precisa para suceder em um teste comum. Conseguiu além disso? Você tem tensões.

E o que as tensões fazem? Elas te dão um resultado melhor ou consomem uma caixinha de stress. Fica mais fácil de visualizar em combates físicos: ao invés de HP você tem três caixas físicas e três caixas mentais (tradicionalmente), caso você sofra um ataque que tem duas tensões, você tem que gastar duas de suas caixinhas de stress, alternativamente, para preservá-las, você pode adquirir uma consequência (leve para 2 tensões, moderada para 4 e severa para 6), que em suma é mais um aspecto.

E das perícias vem as façanhas – habilidades que lhe dão vantagem em casos específicos (como sei investigar muito bem caso haja envolvimento de cães), definir que um fato é sempre verdade (como sempre tenho alguém pra me ajudar, independente da linha do tempo) ou inverter o uso de perícias em funções específicas (como poder usar conhecimento acadêmico no lugar de investigação em locais relacionados ao sobrenatural). E isso é só o básico, o limite é o céu (ou o bom senso). Além disso, quando seu relógio enche, você corrompe um aspecto — reescreve ele — e ganha uma façanha corrompida, uma vantagem sobrenatural, advinda da modificação do próprio tecido da realidade dados os efeitos dos Grandes Antigos.

O sistema é muito simples, e cada vez mais que você joga você vai tendo maior domínio e vai sendo mais intuitivo.

Pra fechar, tem mais duas coisas importantes sobre Fate of Cthulhu.

Monte o seu acopalices

No próprio livro vem algumas linhas do tempo de alguns anciões antigos, com seus objetivos os eventos marcantes, basicamente descrevendo quem? como? quando? e onde? (pessoa, local, coisa e inimigo). Mas além de você poder escolher um dos Grandes Antigos “clássicos”, onde o livro explica todas as motivações e objetivos dele pra você poder narrar, você também pode utilizar as Regras para você (e seu grupo até) criarem o seu próprio Grande Antigo.

E, de verdade, pra mim o melhor jeito de se fazer isso é coletivamente numa sessão zero. Uma pegada meio Spark, pulando um pouco a parte inicial, indo mais pros fatos: o mestre da o pontapé inicial com um pergunta, e cada um pode gastar uma ficha para responder a pergunta e colocar outra na mesa. Umas três fichas pra cada um é o suficiente, e dá pra fazer isso com o Grande Ancião também, na versão em áudio desse episódio eu comento um pouco mais sobre como fiz isso na minha mesa.

Claro que alguns fãs mais ortodoxos ficaram extremamente bravos com essas sugestões “blasfêmias” de sugestão de conteúdo não canônico, muita gente achou que foi só um RPG que poderia muito bem não ter o nome de Cthulhu na capa e funcionaria muito bem. Eu até entendo, mas isso me leva ao meu último o ponto.

A Evil Hat teve todo o cuidado ao lidar com o gênero, todo conteúdo lovecraftiano canônico foi cuidadosamente adaptado, enquanto as partes mais sandbox – bem a pegada do Fate Core diga-se de passagem – foram bem elaboradas o suficiente para você saber pra onde tem que ir e simples o suficiente para ainda ter como você explorar bem suas próprias propostas.

E logo no começo do livro eles colocam o ponto que mais gerou polêmica, eis o segundo parágrafo da parte de Conteúdo e Consentimento:

Além disso — Howard Phillips Lovecraft era racista e antissemita. Pronto. Nós dissemos.

Reconhecendo as ideias condenáveis do autor e ainda apreciando sua obra e encorajando a adoção de obras inspiradas em seu universo de outros autores – alguns desses pessoas de cor – que trouxeram novas perspectivas aos contos de HPL. Assim como, para mim, Fate of Cthulhu também trouxe.

Pra mim é muito difícil não recomendar esse jogo.

Ele é perfeito ou meu jogo preferido?

Não, em alguns pontos ele tá longe de ser. Mas vale a pena testar, vale a pena se dar a chance. Vale a pena ponderar sobre um gênero e saber até que onde mantemos o que já temos e a partir da onde devemos discordar, refletir e reinventar.

Estamos no primeiro dia de junho e finalmente tô revisando esse texto pra postar, engavetado desde o dia seguinte da publicação do meu primeiro texto. A pandemia bateu meio forte pra mim e minha produtividade (e vontade de produzir) caiu total. Mas agora tô retomando as atividades e conlcuindo os textos que tenho iniciado pra depois começar a escrever mais coisinhas novas (sugestões de pauta sempre bem vindas por sinal).

Além disso, com umas paradas pessoais, incluindo mudanças de casa (no plural mesmo) e problemas com meu microfone e setup de gravação, os podcasts acabaram ficando um pouquinho adiados, assim que tudo normalizar e eu conseguir gravar e editar os episódios que já estão escritos vou publicá-los.

Muito obrigado pela leitura, meu nome é Luiz Buscariolli mas fique à vontade para me chamar de Busca. Comecei no RPG em 2013 e desde então fui entendendo e me apaixonando cada vez mais pelo hobbie. Se quiser me seguir por aí é só procurar por @luizbusca nas outras redes sociais e se quiser conferir esse texto em áudio, ele estará disponível em breve no Anchor e nas demais plataformas de podcast, como iTunes e Spotify. Até lá!

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luiz buscariolli
Engrenagens

Paulistano de Brasília que curte design de jogo, gráfico e política. Graphic Design @ IESB.