Periferia em cena: quando o enquadro muda de endereço

Amanda Lira
Enquadro
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8 min readSep 15, 2019
Foto: Marcelo Soares

O que vemos quando a favela se torna personagem de si mesma?

Em Belo Horizonte, cineastas negras e negros têm mudado o cenário do audiovisual, criando um cinema com origens fortemente associadas às periferias. Mais do que fotos 3x4 das comunidades da capital mineira e da região metropolitana, vemos, nas novas produções, selfies dos cineastas. Eles não apenas registram, como se implicam naquilo que produzem.

Movimento, sentimento e explosão. Essas são as características que marcam duas das obras representativas dessa nova leva do audiovisual: “Favela em Diáspora” (2018), dirigido por Gabriela Matos, e “Impermeável Pavio Curto” (2018), curta de ficção realizado por Higor Gomes.

Se a transitoriedade do primeiro, um documentário, traduz-se na remoção compulsória de uma comunidade, no segundo, o ato da mudança se exprime no plano da subjetividade de Jaqueline, personagem principal da obra.

Nos dois casos, o processo de transformação vem cercado por sentimentos relacionados, sobretudo, ao passado. Enquanto Gabriela evoca lembranças e memórias de seus entrevistados rascunhando a imagem de uma realidade já ausente, Higor concede, ao menos no âmbito ficcional, a liberdade que Jaqueline tanto deseja.

A explosão é resultado da convergência de ambos os movimentos. Seja com o posicionamento político de permanência de “Favela em Diáspora”, seja com a postura pessoal de partida de “Impermeável Pavio Curto”, o que se vê em tela são personagens femininas afrontando o contexto em que estão inseridas e subvertendo os rumos das vidas que se passam em dois pontos específicos da grande Belo Horizonte: o Morro do Papagaio e a cidade de Sabará, separados por 20km de asfalto.

Dois entre tantos: em um cenário desfavorável, algumas figuras conquistam o privilégio de (se) olhar

Ao longo de sua história, Sabará viveu um rápido desenvolvimento por conta do Ciclo do Ouro Mineiro. No final do século XIX, no entanto, o município permaneceu de lado enquanto sua vizinha, Belo Horizonte, a primeira cidade planejada da era moderna no Brasil, industrializava-se rapidamente.

A personagem Jaqueline habita o que restou daquela “vila prometida”, repleta de contradições pulsantes enquanto sua própria vida oscila entre os sentimentos extremos da puberdade. Em “Impermeável Pavio Curto”, filme realizado pelo sabarense Higor Gomes, Jaque enfrenta um cotidiano imposto a ela. Diante de uma mudança que lhe desagrada, a protagonista se despede de uma antiga vida para abraçar o desconhecido, sempre na companhia de uma bicicleta que parece simbolizar a liberdade que deseja alcançar.

Em “Impermeável Pavio Curto”, Jaqueline pedala na serrana cidade de Sabará. Foto: Reprodução

Aos 25 anos, Higor Gomes é um dos poucos ou, quem sabe, o único dos moradores do bairro Itacolomi que se enveredou para o cinema — arte complexa e ainda pouco acessível em um lugar onde a desigualdade social é marca. Em “Impermeável Pavio Curto”, esse contexto se reflete em cena: é na rigidez de um enquadro cinematográfico que o diretor faz emergir o cotidiano da Sabará urbana. O anúncio de “pamonha fresquinha, pamonha caseira” que ocupa a tela com naturalidade acaba comprovando a impressão de que Higor filma a própria casa.

Embora tenha nascido em Belo Horizonte, o diretor morou a vida inteira em Sabará. E isso significou realizar o trânsito constante entre o bairro Itacolomi e o centro da capital mineira. “A gente conversa muito entre as duas cidades, Sabará e Belo Horizonte”, conta Higor. “A gente sempre trabalhou em Belo Horizonte, né? Então era uma coisa de sempre voltar para Sabará. Ônibus pra lá e pra cá”.

Essa é uma história que se repete na rotina de muitos dos quase 135 mil habitantes da cidade em que a ocupação territorial fugiu ao controle do Estado. Ao longo de sua história, Sabará assistiu a uma rápida e intensa urbanização. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 1991, cerca de um quinto dos habitantes vivia no meio rural. Em apenas vinte anos, esse número caiu para 2,52%.

Em BH, Higor estudou no Colégio Estadual Central, escola pública de ensino médio situada no Lourdes, um bairro nobre da capital. Com o diploma secundário em mãos, o jovem passou a atuar como monitor de festas infantis até que recebeu a sugestão de vivenciar uma experiência inédita: estudar na Escola Livre de Cinema, núcleo audiovisual belo-horizontino voltado para formação de cineastas. Foi ali que Higor começou a entender os desafios da sétima arte.

Do Itacolomi, o cineasta chegou ao Centro Universitário UNA, instituição de ensino superior privada onde, com o auxílio do Fundo de Financiamento Estudantil (Fies), concluiu seus estudos em audiovisual. Higor é um ponto fora da curva, considerando que, segundo dados do último censo do IBGE, apenas 11% dos jovens de sua cidade estavam matriculados no ensino superior. Dos conterrâneos de Higor com idades entre 18 a 20 anos, mais da metade havia sequer concluído o Ensino Médio.

O cineasta Higor Gomes durante as gravações de “Impermeável Pavio Curto”. Foto: Marcelo Soares.

Histórias semelhantes se cruzam na mesma universidade. A alguns quilômetros de distância, também de um cenário de desigualdades e de exceções, emergiu a estudante Gabriela Matos, de 25 anos. Gabi, como se apresenta, nasceu e foi criada no aglomerado do Morro do Papagaio, em Belo Horizonte.

Embora more em uma região cuja chance de obter um diploma universitário contemple apenas um a cada cinquenta estudantes, hoje Gabriela cursa a mesma graduação que Higor concluiu em 2019. Mais uma vez, é graças aos auxílios governamentais que a estudante arca com a faculdade cuja mensalidade supera a faixa dos R$ 1.800. Isso em um Brasil no qual o salário mínimo instituído por lei sequer chega a mil reais.

Apaixonada por televisão e, especialmente, por programas de auditório, Gabi é filha de uma comerciante do morro — “a melhor empreendedora!”, como ela faz questão de destacar. Foi com a matriarca, que se instalou no aglomerado há quatro décadas, que Gabriela aprendeu a respeitar e a valorizar cada um de seus pares. “Ela me ensinou que toda pessoa que chega com cinco centavos para comprar uma bala deve ser bem atendida. Não podemos desfazer de ninguém por causa do dinheiro que ele carrega”.

Gabi Matos filma no interior da Ocupação Vicentão, no centro de Belo Horizonte. Foto: Renca Produções.

A lição tem se consolidado nas produções de Gabriela enquanto cineasta em formação. “Hoje, cada cinco centavos eu vejo como cada história. Cada história do morro vale alguma coisa diferente, que não necessariamente tem a ver com o valor monetário, mas que tem a ver com o olhar. Cada história ali conta”.

Em 2016, frente uma das diversas desapropriações que recaíram sobre a sua comunidade, a estudante não titubeou: usou sua posição “privilegiada” como uma valiosa arma. Fruto da intersecção entre o morro e o asfalto, ela saiu com a câmera na mão para registrar a intimidade das vítimas de mais uma diáspora forçada no bairro em que cerca de 15 mil moradores dividem entre si uma área pouco menor do que meio quilômetro quadrado.

Foram dois anos de pesquisa e de preparação até que a Gabriela lançasse, em 2018, o documentário “Favela em Diáspora”. No filme, revelam-se por trás dos escombros as identidades que compõem o cenário da migração compulsória. Com uma série de entrevistas, o filme denuncia o já sabido descaso das autoridades e dos órgãos públicos para com as vidas abrigadas no seio das comunidades. Como aponta a sinopse da obra, diante da desapropriação, o que ficaram foram as “memórias de um povo que está à margem do asfalto”.

Durante 22 minutos, o documentário de Gabriela enquadra depoimentos de moradores, imagens das ruínas e registros da intervenção conotativa e denotativa da própria diretora. Com testemunhos emocionados, o filme é todo capturado em preto e branco, sem trilha sonora e sem grandes truques de edição. É seco como o próprio contexto que ele registra. Os momentos de silêncio e de ausência de imagens, aliás, falam mais do que qualquer palavra.

Nos últimos segundos do filme é que surge o grande remate. Abrindo mão da ideia de objetividade, a diretora expõe o seu lugar e intervém na cena assumindo o protagonismo da obra. Nos destroços já apresentados ao longo do curta, Gabriela afixa pôsteres com fotos pessoais das famílias entrevistadas afetadas pelo despejo.

“Ah, agora eu entendi!”, exclama a voz de uma criança ao fundo enquanto as cenas se desenrolam. Trata-se de Isaque, o filho da diretora. A escolha por se manter o comentário espontâneo no filme diz muito: são várias as gerações que, há anos, assistem a história se repetir.

Cenas finais de “Favela em diáspora”, de Gabriela Matos. Foto: Reprodução.

Tanto “Favela em diáspora” quanto “Impermeável Pavio Curto” foram lançados em 2018. O primeiro já passou pela Mostra CineBH (2018), pela Mostra de Filmes Circuito Cinematográfico de Periferia (2018) e pela Semana de História e Democracia do Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais (2019). O segundo estreou no 20º Festival Internacional de Curtas de Belo Horizonte (2018), onde foi premiado como Melhor Filme na Competitiva Minas. Também participou da mostra universitária competitiva do 51º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro (2018), onde recebeu o Prêmio Zózimo Bulbul.

Hoje, ambos os diretores tentam sobreviver de cinema no complexo cenário do audiovisual mineiro. Ao lado de duas parceiras — Natalie Matos e Denise dos Santos — Gabriela Matos fundou a Renca: segundo elas, a única produtora composta apenas por mulheres negras em Belo Horizonte. Higor Gomes, por sua vez, faz parte da Ponta de Anzol, produzindo, junto a Jacson Dias, Maick Hannder e Bruno Greco, três negros e um branco, um cinema comprometido com a justa representação da negritude nas telas.

Qual é, afinal, o impacto negros periféricos geram quando estão atrás das câmeras? O que se vê em “Favela em diáspora” (disponível no YouTube) e em “Impermeável Pavio Curto” é uma metonímia do cinema que vem sido produzido pela negritude em Belo Horizonte. São filmes que, mais ou menos evidentemente, refletem a própria realidade daqueles que o pensam e o constroem. No caso da população periférica, o cinema, mais do que mecanismo de fruição, parece ser visto como instrumento de transformação social.

Se Zózimo Bulbul, principal cineasta negro brasileiro do século passado, costumava dizer que cinema é uma arma, exemplos como os citados evidenciam que, no cinema periférico, ele é um armamento compartilhado. Para a periferia, trabalhar com audiovisual é compartilhar o poder.

Reportagem originalmente publicada no portal Alma Preta.

Texto: Amanda Lira e Gabriel Araújo

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