Ensaio #1 — A Política do Pertencimento

Tatiana Vargas Maia
ensaio.digital
Published in
6 min readJun 6, 2020

Quando a Paula nos mobilizou para tirarmos o ensaio da gaveta, ela nos fez uma proposta multimidia — a ideia de produzir conteúdos sobre sociedade e política em diferentes plataformas, mas de maneira interligada. Por isso, resolvi inaugurar o medium do ensaio.digital, para responder algumas das pergugntas que ficaram de fora dos nossos comentários da semana passada por nenhum outro motivo que não a nossa ansiedade em não saturar o pessoal que estava nos acompanhando com uma live muito longa.

Vamos lá?

  • A Gabriela Nogueira perguntou se a minha “hipótese” (ênfase nas aspas, por favor) de que a Primeira Guerra Mundial ainda não havia acabado era baseada nas leituras do Jay Winter. Eu cheguei a responder durante a live que na verdade a minha inspiração havia sido um tweet de 2014, mas durante essa semana fui procurar a referência, e o curso que a Gabs mencionou é bem bacana, e eu sugeriria esse video aqui, especificamente:
  • O Diego de Oliveira e a Flor (❤) perguntaram sobre a questão do ufanismo e do chauvinismo. Eu entendo os dois termos como sendo localizados e participando da discussão sobre a práxis do nacionalismo (se vocês me permitem). Ainda que a literatura mais acadêmica alterne entre os termos “patriotismo” e “nacionalismo” (uma distinção que discutimos na live da semana passada), os termos ufanismo e chauvinismo tangenciam a discussão sobre a lealdade/associação nacional. O chauvinismo é um termo mais “internacional”, com perdão do trocadilho, mas ele remete ao Nicolas Chauvim, um soldado francês durante as guerras napoleônicas, que depois de ferido em batalha, se torna um bonapartista fanático. O uso original do termo faz referência a essa atitude de devoção cega e até beligerante a uma causa. Por questões de época, inclusive, o termo acaba associado ao nacionalismo. Em 1945, a Arendt associa textualmente o termo chauvinismo à discussão do nacionalismo, em um texto publicado na Review of Politics. Em tradução livre:

O chauvinismo é um produto quase natural do conceito nacional, na medida em que brota diretamente da velha ideia da “missão nacional”. … [A] missão de uma nação pode ser interpretada precisamente como trazendo sua luz para outros povos menos afortunados que, por qualquer motivo, milagrosamente foram deixados pela história sem uma missão nacional. Enquanto esse conceito não se desenvolveu na ideologia do chauvinismo e permaneceu no domínio bastante vago do orgulho nacional ou mesmo nacionalista, freqüentemente resultou em um alto senso de responsabilidade pelo bem-estar das pessoas atrasadas.

O que me chama a atenção nesse texto da Arendt é principalmente a associação do chauvinismo a um tipo de nacionalismo que enfatiza a superioridade da nação, e uma condenscendência imperialista, que, como discutimos sábado passado, pode, e frequentemente se traduz, em uma atitude de agressividade internacional.

A discussão sobre o ufanismo, por sua vez, é bastante localizada no Brasil: o termo é cunhado pelo Afonso Celso no texto “Porque me ufano de meu país”, publicado em 1908. Mas o significado do termo não é muito diferente do chauvinismo: ele remete à atitude de vangloriar as características e realizações de um grupo. Ou seja, podemos dizer que o ufanismo é o chauvinismo à brasileira, e que, não curiosamente, vai desembocar no lema infame da Ditadura Civil-Militar no Brasil, “Brasil: ame-o ou deixe-o”. O que eu aprecio nessa discussão é que me parece que os termos que estamos discutindo (chauvinimso/ufanismo) revelam o caráter efetivo e profundamente radical de ideologias nacionalistas — existe um absolutismo da nação que não pode ser questionado, e que é profundamente violento.

  • Relacionada à essa discussão, a pergunta do Bruno Pereira avança a relação entre nacionalismo e racismo, e a relação entre as duas categorias é bem próxima. Nem todo nacionalismo é necessariamente racista, mas muitos nacionalistas articulam um tipo de pertencimento racializado que resulta em instituições que são racistas. A alemanha nazista é o exemplo mais clássico dessa relação, mas se formos um tanto críticas com relação ao discurso nacionalista, até nações que se entendem, teoricamente, a partir de uma pluralidade etnica-racial — como o Brasil e os EUA, não conseguem escapar da racialização da sua população. Sobre o Noah ter implicado que o racismo dos EUA constituir uma “quebra de contrato” da sociedade americana: eu acho que apenas do “contrato ideal”, dos princípios iluministas de igualdade radical que não são realizados nem pela revolução americana e nem pela francesa, mas que são radicalizadas pela revolução haitiana. Apensar dos principios dessas revoluções avançarem ideias universalistas de igualdade, seus próprios revolucionários são incapazes de realizá-los. Por isso a importância de estudar e discurtir a Revolução Haitiana, colocando ela em pé de igualdade com as outras duas revoluções iluministas. E essa discussão está bastante relacionada com uma outra pergunta que a Gabriela Nogueira fez lá pelo final da nossa live, sobre a “estrangeirização” de parcelas da população. Esse foi um tópico que nós mencionamos de passagem na live, mas que vale ser um pouco mais explorado: a definição dos critérios de pertencimento nacional, por mais que nos pareçam estáveis e perenes, são fácilmente manipuláveis por grupos que conseguem assumir o poder, e o resultado dessa manipulação pode sim ser a efetiva exclusão de grupos que anteriormente eram contemplados na moldura política da cidadania. As Leis de Nuremberg, ao meu ver, são um excelente exemplo disso (mas se quisermos, podemos também ficar com os dois pés no século XXI: A decisão recente da administração Trump de não conceder a cidadania estadunidense automaticamente aos filhos e filhas nascidos fora dos EUA de oficiais estadunidenses em serviço é também um movimento de controle de fronteiras políticas e de exclusão política).
  • O Fabio Dias da Silva perguntou se o BREXIT seria um reflexo direto do nacionalismo inglês, e a resposta é um pouco menos linear do que a gente espera: me parece que o BREXIT articula e comunica muito bem algumas das dimensões do nacionalismo populista inglês, sobretudo do que a gente chama de um nacionalismo econômico, mas eu acho que para afirmar que o nacionalismo causa o BREXIT, ou que o BREXIT estimula o nacionalismo inglês, a gente precisa de um pouco mais de evidência. Sobre o tema, eu gosto bastante desse texto do Calhoum.
  • Lá pelas tantas, eu ventilei a relação entre nacionalismo e imperialismo, e a Júlia Rosa (❤) aprofundou ela nos comentários. Creio que vale retomar essa discussão sobretudo para sublinhar uma questão que não mencionamos durante a live da semana passada: nacionalismo e imperialismo parecem ser ideologias irmãs da política internacional do século XIX, e é difiícil negar a relação de simbiose entre as duas entre a segunda metade do século XIX e a primeira metade do século XX: me parece que o nacionalismo fornece uma base ideológica bem sólida para a justificativa moral do imperialismo (sempre que eu discuto essas questões eu me lembro do poema do Kipling, “O fardo do homem branco”. Quem conhece, vale retomar, quem desconhece, vale descobrir); e nós sabemos que tensões nacionalistas desenvolvidas e acumuladas durante o período da expansão imperial europeia alimentam a I Guerra Mundial. Assim, acho que não seria injusto pensar na permanência dessa relação, atualizada para um neioimperialismo na segunda metade do século XX, permanecesse em Estados com larga extensão territorial — que foram os exemplos que a Júlia citou. (Tem um livro sensacional sobre essa discussão que o Myths of Empire — Domestic Politics and International Ambition,do Snyder).
  • O Matheus Rodrigues perguntou sobre a mobilização do nacionalismo pela extrema direita brasileira contemporânea. Me parece que a extrema direita brasileira segue um caminho muito similar ao de outras extremas direitas ao redor do mundo que regatam e instrumentalizam as narrativas tradicionais a respeito da nação, em oposição ao que eles consideram uma desvirtuação ou uma contaminação da identidade nacional — e esse processo de desvirtuação ou cotantaminação pode ter origem tanto externa quanto interna (e o segundo caso parece ser o que melhor descreve o caso brasileiro, sobretudo se a gente considera o destaque que a narrativa anticorrupção ocupa no discurso da nossa extrema direita). Essa extrema direita então se coloca como o movimento capaz de recuperar a “essência nacional”, purificando a política de tais elementos exógenos.
  • Por fim, a Iasmini (❤) fez uma pergunta que está muito próxima das minhas pesquisas atuais, que é pensar o nacionalismo pelo prisma do feminismo. O que a literatura no tema aponta — e eu acho que a gente percebe isso bem no caso brasileiro — é que o nacionalismo também articula uma leitura a respeito de papéis de gênero, e ela é, via de regra, uma leitura bastante conservadora. Autoras como Yuval-Davis e Elshtain vão apontar de forma bastante ciúrgica para a distinção de papéis e funções sociais entre homens e mulheres, os primeiros servindo como “protetores da nação”, e as últimas como “reprodutoras da nação”. Ao fazer isso, o nacionalismo reitera parte do discurso machista que localiza homens na esfera pública (da política e da guerra) e mulheres na esfera privada (do cuidado doméstico e do trabalho reprodutivo), e influencia debates curciais como,por exemplo, a questão dos direitos reprodutivos.

Acho que era isso, pessoal! Se restou alguma questão não respondida, a nossa caixa de comentários está aberta.

Até a próxima!

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