Escolha Individual, Escolha Social e o Moralismo de Quarentena — uma abordagem quase-técnica

Fabricio Pontin
ensaio.digital
Published in
7 min readJun 22, 2020

Um post que eu fiz ontem no tuíter repercutiu muito mais do que eu esperava, então resolvi aproveitar que temos esse espaço para desenvolver o ponto de forma um pouco mais técnica, até para me explicar um pouco para quem achou que eu tava mandando todo mundo tirar a máscara e sair de casa, e também para aproveitar o ensejo do professor Comim sobre a necessidade da gente falar um pouco mais sobre o trabalho do Sen.

Para começar, o post que repercutiu:

Então, o meu ponto pode ser resumido da seguinte forma: esperar que ações individuais tenham efeitos sociais sem um suporte institucional é fundamentalmente anedótico — na realidade, sem condições de eficácia institucional, a ação individual produz efeitos com pouca replicabilidade e de baixa intencionalidade no âmbito público.

O meu ponto está alinhado, eu acho, com a resposta de Amartya Sen a Kenneth Arrow sobre as condições de eficácia de escolha social, e com boa parte do debate sobre como a gente consegue estabelecer a relação entre uma ação individual e a ação social.

Arrow, em um paper seminal chamado “Social Choice and Individual Values”, revolucionou o debate sobre escolha social ao apontar para o caráter fundamentalmente desequilibrado da escolha social em uma situação de mão-invisível.

Em outros termos: Arrow mostra que é muito difícil a partir de uma situação de escolha individual agregar uma escolha social que represente de forma eficiente e justa todas as vontades individuais. Arrow cria seis condições básicas para a escolha individual, relacionadas com a passagem para a eficiência que ele chama de “função de bem-estar social” (f[SWF]).

Eu tentei abordar este debate aqui e aqui, mas para a discussão de hoje daria para resumir da seguinte forma as condições de Arrow:

  • pessoas escolhem
  • pessoas ranqueiam escolhas
  • pessoas são consistentes sobre as escolhas que ranquearam
  • ninguém pode impor uma escolha a alguém — todas escolhas devem ser livres
  • nenhum grupo, pequeno ou grande, pode dominar de forma decisiva o agregado de escolha social de forma a esvaziar a relevância de outros grupos
  • qualquer escolha possível no nível individual é uma escolha possível no nível social
  • se uma escolha é ranqueada como superior, ela permanece superior para equilíbrio social irrespectivamente da ordem de ranqueamentos menores — essa é a chamada “independência da alternativa irrelevante”, e basicamente implica que se tu vai no supermercado e tua prioridade é primeiro feijão, depois arroz e finalmente quinoa, a indisponibilidade de arroz, junto com a disponibilidade de feijão e de quinoa, não pode determinar a tua escolha por quinoa.
  • mudanças nas escolhas sociais precisam estar refletidas no agregado de escolhas individuais
  • entre as escolhas sociais possíveis, alguma representa especificamente um bem individual para quem escolhe

Arrow passa boa parte do livro mostrando que dentro dessas condições, que são condições que ele adota como condições de “livre-mercado” ou de “não-intervenção”, não é possível, matemáticamente, a passagem de um estado de escolha individual para um estado de escolha social. Basicamente, Arrow indica a impossibilidade de uma função de escolha social que, ao agregar apenas vontades individuais, acabe como uma escolha de “bem-estar”geral.

A questão da quarentena entraria, em alguma medida, dentro do modelo do Arrow. Basicamente, é impossível determinar uma escolha social para a quarentena partindo apenas de escolhas individuais — isso é porque em alguma medida iremos violar ou a regra de não-imposição, ou a regra de não-ditadura, ou a regra de universabilidade, ou a regra de superveniência, ou a regra de single-peak Pareto.

Dá para resumir toda a polêmica, no contexto do Ken Flecha, a partir de uma ilustração formal do problema da geração de estados individuais capazes de supervir em uma forma social coerente no contexto da preferência de ir para a Orla.

Vejam, o que temos nesse caso é um conflito entre a prerrogativa do direito do Jorge em querer ir para a Orla, e a prerrogativa do direito da Manu em querer ter a saúde preservada. Ambos os casos são casos de preferências individuais (uma por sair para a rua, outra de aversão a risco) que querem se manter “estáveis”. Arrow sugere que a gente tente equilibrar essas duas preferências através de um mecanismo de escolha livre chamado “eleição”, com as seis condições ali de cima. O problema é: não fecha.

Nesse sentido, desde uma perspectiva ordinalista (como a oferecida pelo Arrow), escolhas individuais não são plausíveis de mediação direta para gerar estados sociais — é necessária uma mediação externa, institucional, que vai guiar essas escolhas. O Arrow conclui que essa necessidade de mediação externa torna a proposição da escolha social “indecidível”, ou seja, que não existe uma escolha social, apenas a intervenção de um ator externo arbitrário em escolhas individuais para a criação de um equilíbrio estatal artificial.

Arrow é bastante criticado pela posição dele, e tem quatro respostas que me interessam diretamente aqui: o institucionalismo transcendental do Rawls, o institucionalismo aberto do Sen, o capabilismo da Nussbaum e o perspectivismo do Tversky.

A posição de Rawls é a mais peculiar das quatro. Na minha tese de doutorado eu defendi que toda a teoria das preferências de Rawls, que a gente encontra mais ou menos desenvolvida na primeira parte da Teoria da Justiça, e especialmente na elaboração dos juizos morais considerados, é feita como uma tentativa de responder ao Arrow no nível da racionalidade pública de preferências individuais, com uma posterior mediação institucional baseada nos dois artifícios de legitimidade desenhados pelo Rawls: a posição original e o véu da ignorância. Rawls desenvolve a posição dele desde uma perspectiva metodológica, apontando para como escolhas individuais, mediadas por uma racionalidade pública, são capazes de produzir, livremente, escolhas sociais que irão ser mediadas por instituições públicas.

Tentar resumir a posição do Rawls em um parágrafo é meio complicado, e eu já me arrependi de tentar, mas eu acho que o ponto do Rawls seria, passando para a questão da pandemia, a seguinte: Jorge e Manu podem pensar sobre suas preferências respectivas a ir para a Orla ou ter a saúde preservada de forma cambiável, Jorge pode tentar pensar como se fosse a Manu, Manu pode tentar pensar como se fosse o Jorge, e quanto eles fazem isso eles conseguem imaginar um estado social que compreenda uma versão plausível da prerrogativa do direito da ida a Orla e da prerrogativa do direito a ter a saúde preservada que sejam co-suficientes — incluindo as medidas institucionais necessárias para preservar a co-suficiência mútua de cada prioridade.

Sen, na década de 60, inicia debatendo apenas com o Arrow, em cima do conceito de transitividade e da questão dos equilíbrios de escolha, já apontando para um buraco na análise de racionalidade do Arrow — sobretudo na separação mecânica do nível individual e social.

A década de 70 vai nos dar o grosso da contribuição do Sen para o debate sobre escolha individual e social, que está sobretudo no clássico Rational Fools, que é um ataque frontal a todo o modelo de racionalidade individual e escolha social da escola Samuelsoniana, que tem o apogeu no paper do Arrow, e no On the Impossibility of a Paretian Liberal, um paper impressionante, de 1970, que antes da publicação do Teoria da Justiça de Rawls já antecipa problemas na organização axiomática de critérios para escolha social. Neses dois papers a gente encontra o centro técnico da argumentação de Sen sobre escolha social, e ela pode ser colocada da seguinte forma:

Duda e Matheus são porto-alegrenses, e tem interesses distintos, Matheus quer ficar em casa e se proteger da praga, Duda quer correr na Orla e tomar uma cerveja com o Jorge na Lima no final da noite. Esses interesses, no entanto, são indissociáveis dos contextos onde Duda, Matheus, Jorge e até a Manu estão colocados. Os interesses deles não ocorrem desde uma perspectiva hipotética (como queria Rawls, uma perspectiva que Sen vai chamar mais tarde de “institucionalismo transcendental”) nem desde uma perspectiva puramente auto-interessada e que pode ser reduzida a uma transição formal de interesses individuais para interesses sociais (essa é a perspectiva do “tolo racional”, que é como o Sen tá delicadamente chamando o Ken Arrow), na realidade, esses interesses estão em um suco de condições de escolha marcadas por uma sobreposição de sentimentos morais e condições de escolhas sociais que são previamente dadas (e sobre as quais apenas as vezes nossos amigos magrões Porto-Alegrenses tiveram agência).

Daí a conclusão de Sen sobre a relativa superficialidade no foco de análise na escolha individual — precisamos falar, antes disso, das condições de escolha dos indivíduos, isto é, quais são as condições institucionais, públicas, onde eles estão inseridos para escolher. A perspectiva sobre o “bem social” e a “preferência individual” é conectada com o contexto de escolha, com como você está quando você está escolhendo. Mesmo emoções supostamente positivas, como empatia, “senso de comunidade” e amor, por exemplo, nesse contexto, podem ser confundentes para a criação e avaliação de escolha (empatia e amor são ótima sensações, mas podem nos levar a fazer merda do ponto de vista público, especialmente se estamos escolhendo “sem rede”).

Este último ponto é desenvolvido sobretudo pela Nussbaum, e no retorno que Nussbaum faz ao trabalho de Stuart-Mill, para mostrar que já na Economia Política de Mill, a relação sobre a qualidade da escolha individual já é profundamente dependente do desenvolvimento institucional público que dá apoio para o fomento de emoções morais informadas por um comprometimento público — daí a insistência da Nussbaum na perspectiva Milliana para educação, com todas as indiossicracias do modelo do nosso amigo de Oxford. De novo, não podemos pensar nas escolhas individuais de Duda e Matheus, de Jorge e Manu, de Enzo e Clarinha, antes de avaliar como essas escolhas são constituídas, de como emoções são construídas publicamente , inclusive na medida que elas se relacionam com questões cognitivas (que a gente tende a pensar como problemas privados, mas que tem dimensões públicas relevantes, que tão bastante claras na crise de saúde mental associada com a crise do COVID, e nos efeitos dessa crise, vejam só, nas nossas “escolhas”).

Para terminar, vale lembrar que Tversky apontou de forma bem contundente a dificuldade de atribuir “valor” a escolhas individuais na medida que escolhas individuais são percebidas de forma variável conforme a gente muda a forma que narramos elas — a melhor forma de controlar essa polissemia é com “nudges”, ou “empurrões”, que motivam indivíduos a associar seus valores com práticas públicas mais sustentáveis — e, para isso, e para todo o resto que vimos aqui, a gente precisa de uma orientação pública organizada, responsável e consistente.

Que, é claro, é justamente o que a gente não tem.

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