O engenhoso arroz do Conde de Cabidela

Ricardo Pinho
Ensaio Geral
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2 min readNov 3, 2011

Quis o Conde de Cabidela reunir, naquele primeiro dia de Inverno, os mais distintos da corte real portuguesa para que pudessem, depois dum passeio montado por entre as mais serenas maravilhas daquele condado, abrir a estação pela digestão dum repasto de sua feitura.

Nobres, clérigos, e distintos fidalgos atenderam ao jantar, particularmente antecipado pela reputa gastronómica das ceias com que o Conde de Cabidela agraciava os seus convidados.

Primeiro, serviu-se o prato de peixe. Os convidados maravilharam-se particularmente com o fino balanço entre o sabor do lombo do robalo, do salgado que se lhe juraria ser de maresia e não de cozinha, e da subtil e contida mistura de especiarias: muito à excepção dos exibicionismos cometidos nos comeres portugueses daquela época.

Então após o peixe, o Conde de Cabidela convoca a atenção de todos:

— «Concebi, especialmente para hoje, um prato inteiramente novo».

Os criados trazem, para cada convidado, num prato de rebordos elevados como os de sopa, algo de aroma pungente e cor nunca antes vista.

Como um caldo, arroz nadava solto, entre lascas de carne de frango, num aquoso castanho escuro.

— «Sangue, não sarrabulho», explicou o Conde. «Trata-se de sangue mantido líquido por um processo muito natural».

Então os convidados torceram o nariz. Primeiro, ao sangue. Depois, ao saber do processo, ao vinagre.

O sangue ainda passaria. Mas vinagre?, vinagre era o que os pobres deitavam na comida para disfarçar o sabor da putrefacção.

Desde aquele serão, nunca mais se ouviu falar do Conde de Cabidela. Tomaram-no por ter caído na senescência ou, pior, no gosto popular.

A verdade é que, hoje em dia, o arroz de cabidela é um dos pratos portugueses mais apreciados pelas famílias em noites de Inverno.

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