Águas justas

Júlia Palhardi
Ensaios sobre a loucura
2 min readMar 1, 2021
Foto: Divulgação Documentário Elena, de Petra Costa

Das amargas situações que atravessam o nó da minha garganta sem lhe permitir espaço para se afrouxar; das insubmissas vezes em que meus hormônios famintos entram em erupção pelo ínfimo vão existente entre o que o sobrou de carne: a catarse.

Como se eu precisasse do êxtase de um choro para parir o que não me pertencia. Foi na manhã de uma terça-feira em que se deu a partida. Telefones tocando e atendentes repetindo a mesma frase seguida de um bom dia cujo tom estava mais para: péssimo dia, senhor, em que posso ajudar?

Todas tão enlevadas em suas missões diárias de apenas existir. Cruzar a linha de chegada do final de expediente. Todas tão distraídas em suas próprias ambivalências de mulheres que sobrevivem, ao invés de viver, que não perceberam o meu choro em soluços por detrás da tela do computador com planilhas, números e relógio vagaroso.

Chorei a lágrima que há dois meses já gotejava no avesso de dentro, como uma goteira que tenta completar o vazio de uma casa que já não mais tem salvação. E pretendendo me esvaziar por completo, meu corpo-casa induziu mais um vazamento. Dois choros simultâneos: o primeiro ao norte, o segundo ao sul. Senti um líquido quente escorrer entre as assaduras de minhas coxas que se roçam quando ando. Olhos e vagina exteriorizando um acúmulo de raiva e angústia entrelaçadas em suas existências.

Movi meu corpo até o banheiro, sozinha e invisível, — porque naquela sala sou a figura mais imperceptível, ainda que imensa — então abaixei grosseiramente a calça jeans de um azul desbotado e apertado para disfarçar a banha que me banha e que todos os dias apanha da insatisfação alheia.

O sangue sobreposto à calcinha misturava-se à borra cor de canela. Foi possível sentir o aroma da canela infusionada cujo efeito despertava delírios que tentei espantar esfregando o cotovelo de meus dedos nas pálpebras suadas.

O resto se liberou de uma vez, no vaso sanitário. Não mais senti vontade de chorar. Suspirei somente, aliviada. Convenci-me de que era só mais uma menstruação que compareceu tardiamente. Apertei a descarga com a frieza de quem comete um crime para se defender. Águas justas levam embora o que não nos pertence.

Texto originalmente publicado no livro-zine “Seja uma boa ancestral”, fruta do laboratório de escrita criativa para mulheres, com Nina Rizzi.

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Júlia Palhardi
Ensaios sobre a loucura

Fascinada pela arte de ouvir pessoas e transformar as sutilezas do cotidiano, em poesia. Jornalista, escritora, atriz.