Agonia
Estava meio-escuro, mas esta criança conseguia enxergar o batente da porta entre-aberta e seu fraco contraste com a meia-luz provinda daquele silencioso corredor do lado de fora…Estava meio-escuro, mas esta criança conseguia enxergar os dedos do pé, bolinhas minúsculas e macias, era um pezinho pouco pisado ainda. Sua visão era composta por inúmeras camadas penumbrosas, que cobriam cada qual uma escuridão singular. Alguns objetos desvaneciam-se nessa zona indeterminada, no encontro sinistro entre luz e trevas, as coisas não eram nem uma coisa nem outra, habitam o limiar da forma, como se não houvesse nenhum limite capaz de contê-los neles mesmos. Sentiu que a escuridão absoluta era o número 1 perfeito, e que por isso a morte é preta, é o momento de se perder absolutamente nas coisas, de perder os contornos que delimitam essa coisa que está lá dentro. Obviamente teve medo dessa sensação que lhe apertava a barriga; temia se perder e morrer ou morrer e se perder; a mesma sensação que lhe abatera quando se perdeu no mercado semana passada. Nesse momento, um calafrio subiu sob sua pele e a fez estremecer, sentindo tão novinha os lábios túmidos e gélidos da Dona Morte.
Mas era apenas uma simples madrugada e ela era só uma criança que não conseguia cair no sono nessa casa de parente. Sente que a mobília a rejeita e que se ousasse abrir qualquer armário, cairia num buraco interminável.
Todos dormiam e certamente viviam profundamente os seus sonhos proibidos. Mas para ela esses corpos inertes pareciam mortos-vivos. Era como o velho no caixão: era o seu avô, mas não parecia o seu avô, pois ele não estava ali, sorrindo, roubando no dominó e dizendo que conhecia seus adversários “desde outros carnavais”. Quando ele dizia isso a ela — sua mais jovem adversária — intrigava-se levemente por não captar-lhe o sentido com clareza, no entanto lhe apetecia provar desse sabor agridoce de quando se morde a dubiedade dos sentidos. “Te conheço desde outros carnavais…”. Chegou a pensar que ele era um bruxo disfarçado de velho e que a conhecia antes dela mesma se conhecer.
Ela jazia em um colchão no chão, com os olhos espantados e atentos ao silêncio fugaz que fazia entre os intervalos da gota d’água caindo sem querer querendo em direção a pia, ressoando no vácuo a metálica queda aquosa, e depois o tic-tac tenebroso do relógio! Tentava inutilmente fugir daquele momento e volver as alegrias infantis que tivera naquela tarde, em que fora polícia e ladrão e um elefantinho colorido tudo no mesmo dia! Brincadeirinhas que sentia como se fossem a coisa mais séria do mundo e a única coisa que importava nesse mundo. “Não!, Não!, Não!”, o relógio dizia. “Água…Água…Água…” as gotas gritavam agudas e lascivas. E as mobílias mudas em posição de ataque. “Queria ser um morto-vivo, mas estou com tanta sede!” pensou aflitivamente.
A criança morrendo de sede e a casa morta pela madrugada.
Nunca, em toda a sua breve vida, sentira tamanha vontade de beber um mísero copo d’água. “Socorro!!!” pensou em gritar, “Tenho sede”. Se ao menos um dos mortos-vivos despertasse e feito Deus iluminasse esse mundo…Mas aí morreria de medo, tem medo de Deus como tem medo dos adultos.
As gotas caiam, os segundos passavam e não havia luz suficiente. Ela estava completamente sozinha, sedenta e com medo: uma pacata forma de começar a vida.
Na verdade, não tinha certeza se conseguiria sobreviver à isso. Lhe assustou por alguns minutos a possibilidade de morrer de sede, pois quanto ao medo ela já sobrevivera algumas vezes, e no mais nunca conheceu alguém que morreu por ter caído em um buraco sem fim…Mas de sede, de sede sim, sabia que era possível morrer de sede.
Sua boca estava seca como um deserto de pedra, sua garganta árida e oca, sua saliva evaporou-se e não havia mais umidade no mundo. Nem chorar parecia possível tamanha era a secura de sua experiência. Estava sofrendo muito em conhecer tão cedo a sua própria covardia. O que faria com esse sentimento impotente?
Fechou os olhos. Não para se tornar uma morta-viva, pois notou que quanto mais tentava, mais viva ficava, fez-se desafio e foi procurar dentro de si a luz que não encontrava fora. Era tudo o que poderia fazer, só tendo a si mesma naquele breu.
Então lembrou de uma simples madrugada como essa, porém estava em sua casa, convencida de que um ladrão sorrateiramente pulara o muro e pretendia invadir o seu lar, foi na pontinha dos pés até a cozinha e pegou a faca que sua avó cortava sem dó as unhas indigestas da galinha morta e recém depenada. Tinha visto nos filmes que as pessoas se defendiam assim, teve então uma mistura de medo e euforia, como se estivesse num desses filmes; sim, aquela criança seria capaz de atacar um ladrãozinho.
Evocou outra memória: uma vez subirá até o último degrau de uma longa escada móvel, que dava para o topo do telhado de sua casa, aproveitou que o pedreiro se tornará um morto-vivo, como amiúde acontecia após devorar sua poderosa combinação de arroz e feijão. Aproveitou essa deixa e subiu sem olhar pra trás, imbuída por um desejo onírico de tocar as nuvens, subiu inocente a pequenina. Ao chegar no topo, virá seu telhado inteiro lá de cima; o barro que protegia o seu sono da gelada noite, respeitava aquele telhado mais do que qualquer autoridade humana. Mas eis que uma força atraiu o seu olhar para baixo e foi pega por uma sensação abissal, seu espírito foi sugado pelo chão que estava deveras distante. Fechou os olhos e se agarrou na escada, suplicando para que ela não a soltasse jamais. Travou uma luta dentro de si para permanecer imóvel, mas as pernas boliam num frenesi contido. Não saberia dizer quanto tempo ficou assim, pois paralisada esqueceu de si e do tempo até que aos poucos despertou, foi abrindo os olhos e confortou sua alma na estaticidade do telhado, sentindo um cheiro quente de telha molhada. E como se ela já não mais existisse, apenas o seu corpo, foi descendo degrau por degrau, como se fosse fazer isso pelo resto de sua vida. Seu corpo era como uma nota infinita rumo ao nada.
Não conseguia entender como essa podia ser ela.
Não, ela não era mais aquela, não podia ser. Como podia ser? Não podia. Era outra. Podia sentir que até o seu sangue era novo, menos vermelho. Abateu-lhe uma terrível conclusão: aquela outra, então, morreu? Mas morreu de quê? Quem a matou? Só pode ter sido o Senhor, mas que maldade! Ela era uma morta-viva também! Entendeu o ciclo absurdo da vida. A única coisa que restou da Outra foram frágeis imagens que emanavam dentro de sua cabeça a luz do desejo. “Bem, pelo menos isso. É pouco, mas é alguma coisa”. Respirou um pouco de alívio, com sorte não sabendo ainda que esse seu ouro branco seria corroído pelo tempo.
Sem mais alarde, chegou a uma última conclusão: pouco em breve não seria mais o que é agora, mal sabia o que era agora, no entanto sabia, sabia da concretude de sua existência pois estava de olhos bem abertos em plena madrugada. Levantou suas mãozinhas completamente pretas ao contraste da meia-luz provinda do longínquo corredor, se despediu de si e foi encarar aquela escuridão, fosse o que fosse, era melhor do que morrer de sede.