Aquela ligação que se perde.

Sobre tudo aquilo que não foi.

Wellington M.
Ensaios sobre a loucura
7 min readNov 1, 2021

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Francis Bacon, “Seated Figure”.

I.

O telefone é um berro distante. Encanado e desabafado.

Ele verteu naquela hora coisas estranhas e turvas, das quais eu não entendia. Eu o via de longe, e notava a distância entre mim e ele; essa que se espera que fosse próxima e quase inerente: na proximidade de um braço, avisando do mundo e do tempo.

Mas não. Não naquela hora.

Naquele dia, ele estava longe.

Ele não era um telefone de gancho e nem com teclas. Era um celular desses que chamam de smart, que é todo liso, e perto demais. O homem que me observa de longe provavelmente se interroga da razão dele estar longe, mas minha resposta é apenas um calmo olhar nervoso.

Eu não havia atendido ele ainda. Ele berrava.

A cama estava desfeita. O quarto, em penumbra; e o telefone já ia me dizendo as coisas, tudo aquilo que ainda não estava sendo dito. Eu estava sentado, e apertei as juntas de meus dedos; elas doíam. Minha dor ajudava: me arrancava de lá e me atirava no imediato do agora.

Mas onde é lá?

O tabuleiro de xadrez estava na mesa, e nele havia uma jogada a ser feita. No xadrez sempre havia uma jogada a ser feita. Uma antecipação enformada entre peças, um possível dentro do possível, onde o impossível realmente não é possível ー a não ser pela criança que morde a peça e não a coloca dentro do quadriculado.

O importante disto é que a jogada não estava feita, e o jogo não havia acabado. Provavelmente havia pó entre as peças, pois a jogada não estava feita. Uma das pessoas que arranjou essas peças, sou eu. A outra, provavelmente me liga agora. Ela que faz o telefone berrar e chorar com seus diferentes toques. Ela que é o maestro dessa amarga emergência.

Assim deve-se perguntar: porque eu não o silencio?

Essa pergunta não merece resposta, da mesma maneira que o núcleo de um átomo repele os outros.

II.

No hospital sua mão estava gelada. Você estava sem face ali do meu lado junto de nossa espera sem objeto. Lembro disso enquanto a emergência se dilui na penumbra, e percebo que pode ser que não seja você quem me liga. Eu rezo para o meu não-deus, esse que cria essa bolha horrível na minha visão e que trabalha maleficamente para confundir meus pensamentos com o meu intestino. Rezo para que seja você me dizendo que estará ali, logo mais. Que vai vir me salvar de meu quarto na penumbra. Lembro que naquele dia era você que estava perdida.

Senti tudo isso quando me coloquei em risco naquele dia sozinho: sua falta.

Por sua falta hoje é que percebi que naquele dia eu não estava preso apenas em mim. Sua mão estava lá, era ela que estava gelada. Ela que apertava a minha mão e que repousava sob a minha perna, com aquele peso estranho que seus nervos carregavam.

Mas quem iria prever que no fim, o dia solitário, foi o que desenhou o seu fim.

Quem diria que realmente seu beijo era o meu, que minha saliva era a sua, e que minha falta de ar foi também a sua. A distância às vezes aparentemente longa e desértica entre nossas cadeiras na janta, naqueles dias em que a tempestade se abatia sobre nossos temperamentos, onde o menor dos desencontros criava aqueles choques que nos colocava longe, porém tão perto. Atrito esse que mostrava que no fim éramos juntos.

É isso que me torna o arauto de tua morte.

Aquele que a trouxe na acidez de minha saliva e no calor de meus pulmões. Em meu catarro não escarrado, em minha hematose corrompida. Em minha narina ardente, incrustada e vítima de uma tosse transladada para a superfície, aquela em que me esbarro de maneira burra e descuidada, por causa de uma burocracia que condenava nosso futuro e que clamava que eu me juntasse a procissão de espectros caminhantes daquela pandemia.

Eu te beijei, e eu te sufoquei. Eu te amei, e te matei.

III.

Lá. Eu encontrei sua agenda, e nela tinha apontamentos.

Todos me incluíam. Estive misturado a ti.

Uma agenda pode ser uma coisa terrível em certos momentos. Principalmente como o atual: o que vomita em cima de mim esses dois lugares lúgubres que se sintetizam no imediato. O passado sendo uma faca em minhas costas, que me ameaça com o futuro que não existe; mas é no agora que vejo o rastro de sua caligrafia nesse pequeno caderninho ali do lado, onde minha tortura acontece.

Vejo isso de pé, pois a cama permanece a mesma. Está desarrumada faz dias, porque ela preserva o amassado dos lençóis da vez que você dormiu aqui.

É algo que se congela; uma memória completamente externalizada.

Recostada ali na cama você me disse:

ー As pessoas mentem.

Lembro de não lhe encarar diretamente, mas de te ver pelo espelho de nosso roupeiro na frente da cama. Você me olhou de canto de olho.

ー Percebeu hoje? ー Disse sarcástico.

ー Não. É um tipo de mentira muito mais sutil e profunda. Mas também óbvia e hipócrita.

Você me olhou diretamente, e eu retornei o olhar. Ao levantar o celular você me disse:

ー Tudo se trata de uma gigantesca dissimulação.

ー Pois é. Andam morrendo de dissimulação.

Lá é longe. Onde acaba.

IV.

De repente, já fazia dois dias que eu havia atendido aquele telefonema.

Em cima da estante você está presa em uma peculiar redoma de vidro, a qual parece ter te reduzido a um tamanho ínfimo. Sei disso pela periferia, pois minha mão estala e meu estômago transita. O ruído do quarto é constante, e o homem me encara. Você me encara, no passado. Quando riu e segurou nosso cachorrinho chamado Hector, esse que está com sua mãe agora pois eu não suportava mais a ignorância dele sobre tudo o que estava acontecendo.

Sua foto está na estante.

Ela me encara, como me encarava quando eu rasguei o presente com aquele flash. A foto não é você, por isso é ela. Um papel liso e alguns pixels, apenas isso é necessário para romper com o presente e transformá-lo em passado. Você continua me olhando, mas meus olhos não vão em sua direção. Eu permaneço olhando para aquele corredor sombrio que leva para o nosso quarto em penumbra, me sentindo como um rato que se vê em uma ratoeira em formato de casa, onde aos poucos se fecha em meu pescoço, tudo isso enquanto me engano com um pedaço de queijo que não existe, porque o futuro não existe.

Ele foi destruído.

E por isso me rasgo agora, enquanto tento não fugir com os olhos de sua foto, porque aquela vez em frente ao espelho do roupeiro nós fizemos um pacto, mesmo que em silêncio; um pacto tão mais importante quanto o de nosso casamento: o de nunca mais dissimular.

Lá se torna aqui.

V.

O imediato: a dor não deu conta. Caí em mim, e tudo retorna a estar perto. Aqui. No ali, no logo, o ali. Meu pai é o homem que me observa, o telefone é que vibra em minha perna. E o gelo que existe nela é a ausência de sua mão.

Não há corredor, não há quarto, não há penumbra.

Meu pai me interroga, com um olhar de pena misturada com uma pergunta:

ー Não vai atender?

Hesito, naturalmente. Crio o universo, e todos os monólogos que de maneira restrita vesti ele, naquele segundo, naquele século. O nome na tela, eu não vi. Não quis ver. Eu nunca quis ver. Eu nunca quis. O meu dedo deslizou sob a tela gordurosa e vibrante. Ouvi um chiado. Como é estranho ouvir chiado hoje. Não há chiado ultimamente, tudo é novo e direto. O chiado está em nós agora. Como estava em mim ali. Naquele segundo de destruição em massa. Naquele ouvido direito. Ele não está mais no som, o chiado, está no corpo, no ouvido, na pele. Quis ser Van Gogh. Diabo. Odeio o ódio. Engoli o beijo, a angústia.

O chiado era choro.

ー Ela não resistiu Jonas…

E o telefone se torna um encanamento de esgoto com mentiras. Aquilo que sempre foi. Mas são? Como ela ousa me dizer isso dentro desse mesmo horizonte de onde vejo tanta bosta e dissimulação? Meu pai não é mais meu pai. Mas um homem. Um mero homem. Uma carne. Uma causa. Ele é minha causa.

Será que é verdade? Que no fim, logo isso é verdade?

Ela sufocou e morreu. Meu beijo tem oxigênio. Me beija. Não. A rarefação, eu a tenho. Sou um representante quieto de uma monarquia de coroação roxa. Regente de ansiedades. Dona do esforço rarefeito dos nossos pulmões. Tirana absoluta de nossa hematose. E que me sufoca. Me sufoca mas não me mata. Me mata. Me mata. Porque? Me sufoca. Quem me disse? Não, não. Não é verdade, não há verdade em tanta mentira.

Eu não sei quem disse. Provavelmente sua mãe. Uma piada. Eu quase ri. As estruturas, deixaram de haver. Entre mim e aquilo ali. Engordou. O espaço brotou entre mim e a voz. O universo produz espaço, ele está sempre produzindo espaço, entre mim e entre nós. Entre lá e aqui. Ela. Mesmo que sejamos pó, o universo cria um espaço entre nós; então a gente corre, e tenta se abraçar. Tenta. Mas há espaço. Átomos gelados, nunca se encostam. Nossos vazios se chocam. Nossos núcleos se repelem.

O real novamente existe, de maneira absoluta e irredutível. Eu senti a textura da poltrona como se minha pele fosse o tecido. O pó do chão se tornou meu ar. A madeira do portal virou minha mão.

O telefone é um sussurro próximo, que desencana em mim. Me abafa. Me suicida.

Não vou atender.

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