As coisas mais simples

Léo Borges
Ensaios sobre a loucura
5 min readNov 1, 2016

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Nada me fazia o sangue circular pelo cérebro com mais latência do que ver meu pai reclamando da falta de dinheiro. Era um lamento que incutia culpa em todos, de modo que a opressão se estendia do não poder adquirir puro ao se sentir pouco por não conseguir dar andamento a algo que deveria ser diferente. Não posso dizer que tanto fazia, mas era algo próximo disso, do tanto fazer, já que eu não me importava com a utilidade da decadência, até porque muitas das minhas poesias se abasteciam daquela calamidade orçamentária. Se não houvesse carro ou se tivéssemos de ir morar em alguma favela, isso realmente diria pouco para mim enquanto integrante de uma família que sonegava impostos e usava de artifícios outros para manter uma operacionalidade mínima. Eu não tinha medo do porvir, mas tinha certa pena do não saber não ostentar da minha família, e transformava esse receio em algumas letras como essas:

“Até certo ponto, chorei

Não de tristeza, nem de surpresa

Convencido de uma dor que não chegava

Chorei por não acreditar na ambição ingerente”

Minha mesa de aglomerado, um tanto comida por cupins, já havia sido vendida para financiar a aposta do jogo do bicho da minha mãe. Pode parecer insólito, e acho até que é, mas ela acreditava que acertar nas dezenas de algum daqueles animais iria nos tirar da falência iminente. Essa possibilidade, a do trunfo nessa jogatina, era mais plausível, embora fosse ainda assim remotíssima, do que conseguir a sorte via jogos de azar do governo, o caça-níquel legal. Pra mim isso também pouco importava, obter recursos por qualquer via já não emocionava meus instintos.

Os cânticos religiosos da minha mãe se intercalavam aos uivos lamentosos (por vezes enraivecidos) do meu pai dia e noite, emaranhado de ruídos que se sobressaíam, inclusive, aos latidos esfomeados do cachorro que não sabia bem o que era dinheiro e já não estava mais conseguindo comer nem restos de frangos. Tudo aquilo se juntava ao modo deprimido de minha irmã entender as coisas. Ela se contaminava e achava que era preciso estudar mais, trabalhar mais. Pelo menos para não morrer de fome. Ela era a maior inimiga da minha filosofia, contra artes de forma bruta, já que, para ela, isso não “enchia a barriga de ninguém”.

— Isso não dá dinheiro — disse, certa vez, jogando meus papéis no chão. O cão veio correndo cheirar, achando que era comida. Mas, como era só poesia, ele saiu.

Não retruquei, mas, quando voltei do meu emprego de caixa na pastelaria de um chinês (um trabalho medíocre, eu sei, o que pra mim, assumir a sua mediocridade também não quer dizer nada) vi que meu livro do Bandeira havia sumido. O lirismo havia sumido, e eu, como ele, também estava farto.

Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado

— Não quero mais saber do lirismo que não é libertação. — Era frase dele, mas também se encaixava para o que eu sentia. Do que adianta isso? Essas ameaças contra o abstrato e a sutileza? Meu pai vendera o fogão e minha irmã, num gesto bastante insano, o meu livro do Manuel Bandeira.

Perguntei a ela para quem. Ela disse: “Para o Seu Nestor”. Era um entregador de leite. Ele ordenhava duas vacas e vendia os produtos, negócio bem caseiro. Gostava dele. Agora mais ainda por saber (pelo menos era o que parecia) que ele apreciava boa literatura. Com isso minha raiva diminuiu um pouco.

— Por quanto?

—Uma nota de cinco— aquilo não vale nada, mas ele foi tolo e pagou. O suficiente pra comprar um pacote de arroz.

Tudo era mensurado em papéis. Papel moeda. No caixa da pastelaria passavam várias dessas cédulas coloridas pelas minhas mãos. Um entra e sai interminável de papéis que nada tinham de acréscimo, a não ser alguma beleza pela estampa de certos bichos, como a garça, essa que ela trouxe, por alguns minutos, para casa, antes de ser trocado por sacos de grãos brancos.

Curioso isso. O homem destrói o habitat do bicho e o homenageia nesse papel de suposto valor. Peguei uma nota parecida com a que estava na minha carteira. Além da carinha boa do mico dourado, estava lá a mesma poluição visual que dava segurança para que a cédula não fosse falsificada. Uns rabiscos de um tal “presidente do Banco Central”. Outros do “Ministro da Fazenda”. E ainda um “Deus seja louvado”. Era mesmo risível.

Nada ali existia. A assinatura era um carimbo automático frio e impessoal. A garça circula pelos mangues que denunciam a ausência de saneamento. A mesma coisa Deus. Vamos louvá-lo, pois esta é a ordem nesse papel. Onde Ele está? Por fim, a cara da Marianne, teoricamente representando aquilo que os valores da República Francesa trouxeram para o mundo contemporâneo: Liberté, Égalité, Fraternité. Estamos presos nesse ciclo medonho de trabalhar para pegar esses papéis enganadores, tendo de aceitar essas fraudes, juntar estas mentiras, acumulá-las, para, então, podermos ter “vencido na vida”.

Peguei a nota com a arara, duas vezes mais valiosa que a da garça. Na verdade, a mesma quantidade de tinta e as letras sem sentido. Tudo sem lastro em nada, já que a riqueza não existe para ninguém, exceto para os que entendem os poetas. Escrevi nela.

“Toma esse contorno, como quem te revela

Esquece o escárnio que só te aprisiona

Papéis com letras que realmente nos alimentam

São esses nascidos na mente de quem dispensa o ouro”

Levei a nota até a casa do Nestor. Chamei-o. Ele veio.

— Não sabia que gostava de poesia, Nestor.

— Comprei para ajudar sua família. Não li. Botei na estante. Quem chega acaba achando que sou inteligente, o que é bom. Vendo mais leite!

— Me vende ele de volta? Te dou 10.

Ele gostou de devolver a obra por um valor duplicado. Aceitou, pegou o livro, me devolveu, mas, antes que eu saísse, reclamou.

— Está rabiscado!

— Da mesma forma como te acharam inteligente com um livro de poesias em casa, vão te achar inteligente agora com uma cédula cheia de lirismo. E, ela não vale o dobro? Então, você permanece como inteligente e com mais dinheiro.

Abriu um sorriso. Adorou. Gostou tanto que, ao sair, até vi que ele leu o que estava escrito. Se tornou um leitor de poesias. E, para minha surpresa, não só isso.

Ao levar leite lá pra casa, eu o pagava com mais poesias. Minhã irmã não entendeu muito bem. O Bandeira voltara e outras coisas também, sem nenhum tráfico monetário, sem folhas coloridas, apenas folhas escritas, letras, palavras. Não técnicas ou acadêmicas, como ela bem queria, ou acreditava, mas as que tocavam, que eram mesmo a razão da vida, do existir. Meu pai parou de se lamentar e escreveu. Minha mãe parou de rezar e poetizou. Ladrões pararam de assaltar, pois cédulas não valiam mais nada. Ninguém mais acreditava nos rabiscos do Banco Central e todos agora trocavam seus produtos por aquilo de melhor tinham: suas emoções.

Assim eu quereria meu último poema
Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais
Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume
A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos
A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.
” M. Bandeira

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