ATÉ QUE A MORTE OS SEPARE.

F.
Ensaios sobre a loucura
4 min readApr 21, 2021

Viviam um casamento comum. A paixão não morava mais na casa, mas de vez em quando visitava. As crianças eram felizes e tinham tudo que queriam ter. Era uma dos lemas de Rodrigo: dar aos filhos aquilo que não pode ter. Lídia concordava silenciosa, mas pensava que os filhos eram mimados demais, aborrecidos demais com a vida boa que tinham.

Dedicavam um dia para cuidar do casamento. Saiam de casa para aproveitar o movimento na cidade. A ideia veio de uma amiga de Lídia. Era uma receita para recuperar o tesão da relação, coisa que nunca nunca aconteceu. De qualquer forma o dia de folga se tornou hábito.

Naquela quarta-feira combinaram de jantar no Le Bistro. Um Rodrigo atrasado encontrou uma Lídia ansiosa, sentada à mesa do restaurante.

“Precisamos conversar, amor”, disse Lídia. “Fui a um psiquiatra hoje a tarde”.

Os olhos do homem de quase trinta e cinco anos se arregalaram. “Psiquiatra, por quê?”

“Rodrigo, eu tenho me sentido cansada e triste o tempo todo, eu já te falei sobre isso”.

E realmente falara, mas Rodrigo ignorou. Acho que se tratava de coisa momentânea. Sentimentalismo feminino. Alguma amiga devia ter engravidado ou, sei lá, comprado algum aparelho que Lídia não tinha.

“Fiz um teste e o doutor me diagnosticou com depressão profunda. Me pediu para iniciar o tratamento o mais rápido possível”, disse uma Lídia a beira do choro.

Rodrigo estava atônito com a reação da esposa e teve que refrear uma risada. “Meu amor, eu te vejo todos os dias, você não está deprimida. Estes médicos recebem dinheiro pra prescrever o máximo de pílulas possíveis”

“Eu preciso!”, gritou Lídia. O restaurante inteiro se voltou para o casal. Rodrigo enrubesceu e Lídia pôs as mãos sobre a testa. “Eu preciso, ok? Desculpa por gritar, mas eu preciso”.

“Ok”, aquiesceu Rodrigo. “vamos comer e deixar isso de lado. O que você precisar eu estou aqui.

No dia seguinte Rodrigo desabafou com um colega.

“Depressão, que bobagem é essa? Vida feita, filhos saudáveis, depressiva, de que jeito, Carlão?”

“Ah, Rodrigo, é mulher, né? Sabe como a coisa é, tudo que aparece de novidade elas querem ter”.

“Não sei, Carlão, não sei…”

“É a moda do momento. Se ela não tiver bipolaridade ou depressão, as amigas vão começar a estranhar”, disse o colega rindo. “Se ela fosse mais jovem ia ser a tal da bulimía, do TDAH, isso passa, confia em mim”.

“Queria que tivesse algo que eu pudesse fazer. Gosto dela, porra, minha companheira”

“E tem, essas drogas aí viciam, transformam a pessoa em um zumbi. O que você tem que fazer é dar um jeito pra ela não tomar essas porcarias e pronto”

O resto do dia no escritório correu tranquilo e Rodrigo saiu mais cedo. Sabia o que fazer pra ajudar a esposa. Passou na farmácia de manipulação da esquina e comprou vários compostos manipulados. Levou os pacotes dentro da maleta. Encontrou a mulher na entrada da casa e a beijou calorosamente.

“Lídia, eu estou aqui por você, ok? Sempre”, sorriu e foi para o quarto.

Enquanto a esposa tomava banho e as crianças estavam no sétimo sono, Rodrigo agiu. Pegou a caixa de remédio tarja preta da esposa e analisou. Encontrou nas caixas que trouxe da rua um comprimido com o mesmo tamanho e cor. Trocou o conteúdo, fechou o pote e voltou ao quarto.

Já na cama, a mente acelerava e no peito sentia remorso por enganar a esposa. Ainda assim, conhecia as neuras dela e não iria deixar que ela fosse enganada por um médico charlatão. Ao pensar nisso, tranquilizou-se e dormiu tranquilo.

A rotina da troca dos remédios se mostrou cansativa. Lídia recebeu uma recomendação do médico para dobrar a dose de remédios e por isso os comprimidos tinham que ser trocados toda a semana. Rodrigo achava a tarefa degradante, mas seguia firme no propósito.

Meses se passaram até que Rodrigo levou as crianças no parque de diversões na cidade vizinha. Lídia decidiu não acompanhá-los, havia contatado uma amiga que não via a tempos e iria visitá-la. Beijos os filhos com carinho e acenou para a família conforme o carro de Rodrigo se afastava da garagem. Cometeu suicídio poucos minutos depois.

Um belo velório foi arranjado. O irmão de Lídia ajudou na organização, pois Rodrigo estava ocupado consolando os filhos. Os amigos olhavam com orgulho para o homem que se mantinha forte num momento tão triste.

Ao final da noite, quando apenas os mais próximos ainda estavam no cemitério, um homem de quarenta anos entrou na sala onde o corpo de Lídia era velado e se aproximou de Rodrigo.

“Sr. Rodrigo, me chamo César. Fui o médico de sua esposa nos últimos meses. Sinto muito pela sua perda”, o médico tentava esconder mas suas palavras saiam pesadas.

“Obrigado, doutor. É uma situação difícil de compreender, gostaria de ter podido fazer mais por ela”

“Você fez tudo que pode, Rodrigo. Lídia contou-me diversas vezes sobre o dia em que você chegou em casa, a beijou e disse que estaria com ela. Aquilo fez muito bem a ela. Ela sofria de uma depressão profunda, um dos casos mais severos que já testemunhei, a única coisa que poderia tê-la salvo era a medicação, mas esta nunca fez o efeito esperado. Acontece as vezes, é uma fatalidade”.

Enquanto ouvia o médico, os olhos de Rodrigo se iluminaram. Algo óbvio e flagrante lhe saltou a mente. Algo que ele não havia processado ainda. Por alguns instantes encarrou o médico de sua esposa e por fim, caiu ao chão. Em prantos, balbuciando o nome da esposa.

“Que tristeza”, disse uma senhora que acompanhava o choro de Rodrigo. Esticou a cabeça e cochichou para seu marido. “Este homem em prantos, essas crianças orfãs, tudo por causa da covardia e fraqueza dessa mulher”.

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F.
Ensaios sobre a loucura

First you take a drink, then the drink takes a drink, then the drink takes you. — Fitzgerald.