Au Revoir Toronto

Despedidas comuns em lugares comuns

Susana M.
Ensaios sobre a loucura
3 min readJun 9, 2022

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Era meu último dia em Toronto. As chaves do meu apartamento em Yorkville já haviam sido entregues, malas prontas, passaporte a postos no bolso da mochila. Depois de três anos vivendo como uma estrangeira naquela cidade, me parecia aterrorizante a ideia de voltar para a casa, como se “casa” fosse o lugar de onde viemos e não onde nos esforçamos para construir uma vida inteira. Eu estava pensando sobre isso enquanto Dave fritava ovos com bacon para o nosso café da manhã, fazendo jus ao clichê dos filmes norte-americanos de baixa qualidade. Abri a porta para espanar a fumaça do ar (ele morava no porão de uma casa de família, com janelas e ventilação escassas) e comemos em pé na frente do fogão enquanto discutíamos sobre as ervas daninhas que cresciam no seu quintal.

Dave abriu a geladeira e me trouxe meia torta de mirtilos: “I cooked it for my daughter, she loves blueberries”. Ele tinha uma filha de quatro anos. Isso me lembrava que, na verdade, ele tinha uma vida inteira naquela cidade, que começara muito antes de mim e certamente não terminaria com a minha partida. Tudo continuaria como sempre foi. Eu também tinha uma vida inteira pela frente — precisava voltar a São Paulo e cuidar da minha mãe, ainda doente, pensar em uma faculdade, arranjar qualquer coisa para fazer da vida. Mas mesmo assim eu me sentia grata por tê-lo encontrado. Passamos o resto da manhã abraçados com as bocas azuis de mirtilo ao som de Just the way you are do Billy Joel.

Eu não ligava para os objetos que estava deixando na casa do Dave, exceto pela minha bicicleta. Ela havia sido minha fiel companheira durante todo esse tempo e merecia um destino condizente com o valor sentimental que eu lhe atribuía. Felizmente ou infelizmente, não apareceu ninguém interessado em comprá-la no Craigslist até aquele dia, e havia sobrado para o Dave a missão de encontrar alguém minimamente confiável para cuidar dela depois da minha partida.

“Let’s hang out.”

“Ok.”

Colocamos dois latões de Heineken no cesto da minha bicicleta e saímos para pedalar. Como de costume, as ruas estavam todas vazias — o subúrbio de Toronto às vezes parece um lugar fantasmagórico, mesmo às três da tarde de um dia de semana. Apesar de morar naquele bairro há pouco menos de um ano, Dave já conhecia todas as ruas e pequenas vielas, por onde cortamos caminho até chegar em Riverdale. Encontramos um banco de madeira com vista para a CN Tower e nos sentamos com os ombros colados um no outro, contemplando o horizonte.

Nós dois sabíamos que aquela era a última vez que nos veríamos, mas naturalmente falávamos de tudo, menos disso. Tínhamos um acordo secreto de comprar um trailer e viajar o mundo juntos caso ambos continuássemos solteiros quando ele chegasse aos cinquenta anos de idade. Ele estava com trinta e sete e eu tinha acabado de completar vinte e dois, de modo que, aos cinquenta, a diferença de idade entre nós não seria moralmente questionável como parecia ser naquele momento. Eu pensava nessa promessa, sabendo que jamais se concretizaria, e ouvia ele falar sobre uma viagem antiga a San Francisco ou New Orleans. Não havia muito o que dizer sobre viagens de trailer.

O céu de Toronto parecia uma flor de baunilha gigante, formando uma imensa auréola amarela e rosa por entre as nuvens. Eu gostava daquelas cores, mas naquele momento elas só indicavam que estava ficando tarde e era hora de ir embora. “It’s almost over, right, honey?”

Nos abraçamos forte, os narizes encostados e dedos entrelaçados.

“Au revoir darling.”

“Au revoir Dave.”

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