Avaliações 2

Léo Borges
Ensaios sobre a loucura
7 min readDec 15, 2018

“Parece estranho, até mesmo triste (ou cômico, vai saber), mas não lembro que Grande Salvador vim buscar: se um advogado, um conselheiro matrimonial ou um psiquiatra.”

A primeira parte da história pode ser vista neste link:

Eu sabia que entrar num carro não era um gesto que terminava em si. Obviamente que eu me deslocava a algum lugar para realizar ações que iriam contribuir para a minha vida ou, quem sabe, para a vida da sociedade. Também poderia ser que eu estivesse indo para a casa de uma pessoa apenas para dizer o quanto ela me era importante; poderia estar indo comer um sanduíche, consertar relógios, ver peças para meu carro que fazia um barulho tenebroso ou até estar indo desenvolver um novo tipo de sabão líquido. Mas ocorre que fui subjugado pela minha desordem cerebral e o comichão da loucura que, não raro, beliscava minha mente, reapareceu. Me vi lutando para descobrir para onde ia e o que iria fazer. O trânsito parou e me deu breve instante de sossego para reverter esse novo lapso. Os pensamentos, porém, se desentendiam e o que me restou foi ver meu vício obscuro ressurgir: avaliar.

No carro parado ao lado do meu, uma pessoa que eu acreditei ser uma mulher com seus impressionantes 93 ou 94 anos de idade, olhava, sozinha, seu celular enquanto aguardava fluir o trânsito. Quem foi o irresponsável que deixou essa idosa tomar posse de um veículo automotor? Ela tinha semblante apreensivo, o que na idade dela era algo digno de aplausos, pois poderia já estar como eu, tão mais novo, mas com a sanidade já tão corroída. Embora tantos anos guardassem um sem número de instantes alegres e tristes, a agonia que ela experimentava ali — mais poderosa que a minha, que temporariamente esnobava a existência — era digna de anotação. Com esse acúmulo de passado, qualquer emoção a mais poderia não ter muito efeito, ou, ao contrário, ter efeito devastador. Pelo seu semblante tenso, acredito que essa última opção era a que se enquadrava, o susto de uma morte inesperada ou coisa equivalente. Essa era a hora em que eu deveria ter piedade, e de fato tive. Tinha muito tempo para sentir pena dos outros e ela poderia contar com minha comiseração — sem nenhuma contrapartida, claro. Seu sofrimento mudo (assim preferi que fosse) me acalentou. Mas havia outros carros e outras histórias que poderiam ter interpretações menos dúbias ou penosas.

Em relação ao casal do lado oposto, havia um ar de sintonia não ajustada. A mulher que acompanhava o motorista era bonita, tão bela que ficava incongruente entendê-los como casal. Acredito que fossem colegas e que ele a levava com intenção de algo mais (sexo, muito provavelmente). Essa teoria ganhou força quando vi que ele olhava, com certo receio de ser flagrado, para os seios vazados em um decote ousado. Dado momento olhou para o meu carro também e, nesse lance, enrubesceu, pois achou que eu monitorava sua lascívia. Ela era provavelmente casada e isso o continha, mas não a mim. Eu não estava nem aí para isso, pois já senti vontade de beijar outras bocas comprometidas e acariciar aquele rosto, dotado de grande plasticidade e meiguice, seria apenas mais um desses meus desejos secretos que, ao contrário da minha noção de realidade, não somem. Evitei emitir parecer sobre a conduta do homem, pois tivesse oportunidade, teria atitude até mais insidiosa. Inclusive, num rápido cruzamento de olhares com a gata, que mostrou-se mais linda assim do que de perfil, quis acreditar que ela me guardara na memória, que também tivesse me avaliado positivamente.

Enquanto motos passavam zunindo, buzinando e sem maiores receios pelo corredor de carros parados, observava à minha frente uma dessas caminhonetes de frete. Estava cheia de objetos empenados, mas isso não me interessava. Queria era ver a feição do sujeito que transportava esse material sem valor. Pelo retrovisor dele vi refletido um indivíduo de óculos escuros, tom ligeiramente arrogante, semblante de quem estava resolvendo uma situação muito complexa, o que soava bastante ridículo. Possuía algum estilo, embora fosse evidente que gostaria de estar num veículo mais interessante, na companhia de uma mulher que fosse tão atraente quanto a do cidadão do carro ao lado. Creio que esse sujeito seria mais corajoso em expor sua vontade do que o outro, o vacilante. Essa minha avaliação me pareceu certeira. Estava claro que eram pessoas em papéis trocados, em situações sem nenhum encaixe, vivendo agora as consequências de decisões equivocadas que tomaram no passado. Tivesse estudado mais ao invés de ficar se enchendo em bares, talvez agora o sujeito da caminhonete estivesse dirigindo carro melhor, preso no engarrafamento, sim, mas sem esses óculos toscos, que falseiam um charme pretensamente sagaz. Bem de vida, poderia ter acesso a beldades sem que precisasse carregar essas tralhas inúteis fazendo ar de que vive melhor do que os outros. E, por sua vez, se na vida tivesse cultivado ímpeto ao invés de moralismo, o motorista da carona já teria dado oportunidade à mulher dos seios semi-desnudos escapar — por breve período que fosse — das garras de um casamento cujo decote arrojado me dava a certeza de ser bem tedioso.

A velha agora estava chorando. Preocupava-me. Leu que a pessoa morreu? Ou será que alguém nasceu? Nunca consegui diferenciar choro de alegria para o de tristeza, muito embora sejam de uma emoção claramente antagônica. O trânsito parado e ela num pranto legítimo. Muito bom ver o transbordar de sentimentos em meio ao caos de vidros, ferros e fumaça. Me solidarizar num momento como esse (caso fosse mesmo sofrimento), me faria bem. Pra falar a verdade, não sei ao certo se seria natural da minha parte ou se eu acabaria por ser mais amparado do que ela própria, carente que eu era e que sempre fui. Agora, se fosse por algo bom, eu não teria nada a fazer. Dar os parabéns? Não, não é comigo… sei lá, me soa estranho e sem propósito — congratulações são sempre menores que pesares. De qualquer modo, melhor isso do que ser um pernóstico avaliador, perdido em uma cidade decadente, que faz as suas análises, dá seus vereditos e que cada vez mais passa a viver em função disso.

Essa convulsão de origem não identificável de uma das figuras que eu avaliava me tirou a atenção do último carro, o que estava atrás. Havia em seu interior, no mínimo, umas cinco pessoas empoleiradas. Mesmo com o vidro escurecido por uma película opaca, era fácil notar que possuíam semblantes hostis, lugar onde uma energia pesada pairava. Aceleravam e freavam, impacientes, criando um tom ameaçador aos demais. Caso eu afirmasse que se tratava de vagabundos, seria aposta com probabilidade alta de acerto. Mas era o preconceito me auxiliando nessa avaliação: vi num dos braços do motorista, quando esse fez gestos pela janela, uma tatuagem horrorosa, e isso, para mim, era sinal de alguém que experimentou cadeia por um tempinho. Se o motivo do engarrafamento fosse blitz da polícia, eles estariam realmente numa enrascada. Contudo, se fossem mesmo assaltantes, já teriam saído do carro e promovido algum tipo de balbúrdia, deflagrado um arrastão agitando armas e gritando “perdeu”. Bandido é um ser inquieto por natureza, não aguentam dois minutos de introspeção sem algum alvoroço. Uns merdas.

“Nenhum dos presentes ainda questionou o tempo perdido porque ninguém — e essa é a dura verdade — sabe muito bem o que quer. Temem o que está por vir, o modo como virá e, principalmente, o que será feito para minimizar os estragos caso o que venha, venha de maneira agressiva.”

Tantos confrontos com as mais variadas espécimes urbanas enterrou de vez a minha capacidade de esclarecimentos sobre minha própria vida. Choros, arrogância, libido aflorada, beleza entediada, tensão no ar, pane mental, avaliações. Restava-me reunir todos nós e os aspectos caricatos de cada um com minha frieza, o que não era motivo de regozijo e, até pior, isso apenas realçava a minha característica mais cruel: a de um julgador sem parâmetros, cujo resultado além de não ter serventia, não me fazia alguém mais feliz. Queria chorar com a idosa, ajudá-la a chegar no horário do sepultamento; estar errado quanto à chance de haver uma emboscada pelos trogloditas; conter meu ego ante um adultério com alguém que se mostrava claramente disponível à prática; dizer para o funcionário esnobe que, em última análise, ele não era só mais um, embora assim parecesse. Mas comigo nada funciona como se espera e tudo ganha contornos venais. Por fim, quem mais se aproximava de minha psicopatia crítica ali era o motorista que conduzia a gostosa. Ele podia avaliá-la até melhor do que eu, já que estava colado nela, num bom carro, tudo propício. Mas ele parecia banana demais para investir.

Nisso, apareceram vendedores. Muitos. Não quis avaliar cada um deles, já que seria tarefa demorada. Mas, para um fiz a ressalva: ele vendia amendoim trajando camisa de botão, o que supunha ser sua melhor vestimenta. Era surrada, mas com ela ele ostentava certa classe. Ofereceu, gritando e gesticulando, para todos nós e ninguém se interessou, exceto a gata. Quando baixou o vidro para falar, vi que seu interesse não era nas guloseimas do sujeito relativamente bem vestido, mas em saber sobre a situação do trânsito.

— Moço, daí você consegue ver se teve alguma batida? É blitz? Assalto?

A voz dela soou tão bonita quanto seus traços faciais. Bonita ao ponto de me fazer esquecer não apenas meu infortúnio mental, como também fazer cessar minha necessidade doentia de continuar avaliando deliberadamente. Minha admiração por ela aumentou e desejei de alma que a cantada do seu colega motorista fosse fraca o suficiente para que ela continuasse na rotina do seu casamento, pensando em outros homens enquanto fazia amor. Desse jeito, ficava a minha torcida para que, então, eu aparecesse a ela nesses momentos.

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