Foto de Geraldo Roberto da Silva

Avaliações

Léo Borges
Ensaios sobre a loucura

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A mulher de casaco listrado perto da janela dormiu com a boca aberta. Às vezes, seu tronco tomba pra cima da velha ao lado que, tremendo como se estivesse levando um choque consideravelmente forte e contínuo, tenta acender um cigarro. Acho que não existe nada mais feio que isso: incomodar (ainda que involuntariamente) quem está tentando fazer alguma coisa. Mas, o que me espanta mais é o casaco. Não por ser feio, mas por isso aqui estar uma sauna e ela estar vestida com ele. Se bem que ele também é feio (ou sou eu avaliando mal novamente).

Todos aqui, assim como eu, têm problemas e isso é notório. Mas, no meu caso creio que são vários e acho que é por isso que minha memória está me sabotando. Parece estranho, até mesmo triste (ou cômico, vai saber), mas não lembro que Grande Salvador vim buscar: se um advogado, um conselheiro matrimonial ou um psiquiatra.

O que sei é que estou esperando uma solução para o que me aflige. O esquecimento deixou de ter relevância quando busco o tratamento do que me perturba, porque esse lapso me dá tempo para produzir minhas versões, curtir ou rechaçar as aparências, avaliar as fisionomias e, enfim, praticar mentalmente meu preconceito — e isso, admito, é particularmente prazeroso.

O objetivo principal de todos aqui é o de retirar os obstáculos que estão bloqueando suas felicidades, os entraves que azedam a vida, mas, todos, em última análise, são também avaliadores enquanto esperam. É regra que não admite exceção, válida inclusive para a garota de vestido curto que, nesse momento, está folheando uma daquelas revistas fúteis, admirando ou invejando atrizes televisivas. Com as coxas à mostra, ela saiu de casa (claro que com a anuência dos pais) para provocar. Como é deliciosa essa daí. Mas eu tenho de reprimir esse desejo, afinal é nova demais, talvez não mais que quinze anos. Coisa feia (o desejo, não ela).

E aquele gordo que não para de me olhar? Está com raiva de mim, deve estar achando que sou pedófilo. Ou não. Seu olhar é meigo, um olhar muito parecido com o meu para a menina: impetuoso, sedento, com alguma obscenidade e um pouco julgador. Abrindo meu coração eu digo que não me incomodo com gordos, pois sei que são pessoas carentes, cuja gordura excessiva acabou por se transformar em células inchadas de remorso. Quanto aos homossexuais, vou além. Não apenas não me incomodo como até nutro certa admiração pela personalidade com que se afirmam. Só que analisando friamente agora, acho que meu respeito por eles decorre mais de um temor coercitivo do que de uma concordância natural, já que até mesmo o franzir de sobrancelhas com o qual condenei o flerte inoportuno do gordo foi mal interpretado por ele (ainda não sei em que proporção), o que levou a situação (boba num primeiro momento) a um ponto controverso, porque estou notando que ele se mostrou bastante contrariado com a minha contestação muda e passou a fazer cara de zanga…

Porém, não me contenho e sigo avaliando. Inclusive os cabelos. Por falar nisso, há uma negra na ala da direita que optou por uma espécie bizarra de alisamento: abandonou seu tipo original para investir em uma arquitetura engessada (que produtos ela usou para obter aquele resultado medonho será sempre um mistério para mim). Questão maior aqui, contudo, é saber quem incutiu nela a necessidade de ter aqueles cabelos estranhamente artificiais. Imposição da moda? Do marido? Dela própria por não concordar com a originalidade de sua genética? Ou foi coagida pela sociedade a adotar um conceito completamente deturpado de beleza? Difícil saber…

A velha, o isqueiro e o cigarro ainda se digladiam. A tremedeira (que pode ser de angústia, mas em hipótese nenhuma de frio) está claramente atrapalhando suas tentativas de saborear o tabaco. Uma pena, pois a fumaça e o fedor, calmamente espalhados pelo moribundo ventilador de teto, revigorariam estas pessoas desanimadas. Um ou outro, por certo, iria se contorcer na cadeira, resmungar, tossir. A mulher de casaco acordaria sobressaltada (provavelmente engasgada com a própria saliva contaminada por nicotina), e eu veria, enfim, alguém mudar de comportamento, transgredir, gritar: “Aqui não é lugar de cigarro!”, “Onde está o doutor que vai me atender?”, “Preciso saber se meu processo contra o banco já andou!”, “Minha mulher me traiu pela oitava vez, já é o momento do divórcio?”, “Crocodilos ainda estão dormindo no meu sofá!”

Por falar em gritar, chegou um esquálido sujeito de óculos amparado por um homem que solta uns urros ocasionais. Procuraram por cadeiras vazias, mas, vaga mesmo, apenas uma, e como não podiam se desvencilhar um do outro (sob o risco de desmoronarem), concluíram que o melhor era mesmo continuar de pé. Eu, sinceramente, não me arrisco a dizer qual dos dois ali vai se consultar, porque ambos, para mim, aparentam estar muito doentes.

Meus olhos continuam se mexendo vorazmente, cristalizando opiniões. Nada escapa ao meu crivo, nem mesmo os componentes que ao local acrescentam enfado. O relógio na parede possui ponteiros mais preguiçosos que o normal, mas ainda que estes se imbuíssem de dinamismo, o resultado final seria o mesmo. As revistas dispostas sobre a mesa só atraem a atenção dos que não querem se informar. E o pequeno e insosso crucifixo preso pelas costas a uma parede com negrumes de bolor (muito bem combinada com o semblante mofado dos que esperam), continua ali, tão alheio quanto os seres da sala. Certo é que aquele objeto semi-enferrujado não é capaz de emitir opiniões, nem muito menos olhares reprovadores, mas seu simbolismo nos remete ao pico das avaliações, o veredito mais ácido em termos de julgamento, aquele que advogados, conselheiros e psiquiatras devem, em tese, temer: o Juízo Final!

O que me incomoda de verdade nesse lugar é exatamente o que há de melhor nele: o conjunto inerte. Ninguém se impacienta com as discrepâncias veladas, com o calor absurdo ou a com absurda falta de explicações; com os cacoetes desesperados ou com as pretensiosas disciplinas; se envolvem mentalmente com os comportamentos grotescos, mas se lixam para os sofrimentos íntimos de seus pares. Ignoram o símbolo religioso carcomido, mas não o medo irracional que esse tipo de ornamento exerce sobre nós, neutralizando potenciais revoluções e convertendo circunstâncias claramente estranhas em eventos meramente normais.

Nenhum dos presentes ainda questionou o tempo perdido porque ninguém — e essa é a dura verdade — sabe muito bem o que quer. Temem o que está por vir, o modo como virá e, principalmente, o que será feito para minimizar os estragos caso o que venha, venha de maneira agressiva. Desse modo, o aguardar se torna menos nocivo que o ser atendido, o tolerar melhor que o ousar e o padecer mais seguro que o solucionar. Enfim, o que domina o ambiente é essa ânsia fúnebre de que o Grande Salvador (que nesse caso não é o Pai do Cristo metálico) surja trazendo o conforto das respostas certas. Mas, por enquanto, o que temos são apenas as avaliações secretas e preconceituosas uns dos outros.

É… pensando bem, talvez eu esteja mesmo num consultório psiquiátrico, já que acredito que nenhum conselheiro afetivo resolveria minhas crises circenses de ciúmes e que nenhum advogado ouviria meus berros reclamando da imensa fraude que é este mundo. Lamentar que é traído ou que o mundo é injusto e cruel não demonstra a insanidade ninguém, muito menos a minha, mas me causa a frustração necessária para que eu me coloque como a maior das vítimas e, assim, assuma o lugar-comum com a maior das depressões.

Chega! Vim aqui para ser avaliado, não para avaliar! Esse é o meu grande defeito, o motivo pelo qual estou nesta sala: por julgar sem conhecimento, por avaliar sem critério e por supor sem necessidade. Quero abandonar esse vício silencioso que secretamente me corrói. Mas, para ser sincero, não sei se aqui existe alguém capaz de deixar de lado seus sofrimentos mudos (um paradoxo no caso do que grita) para encarar uma batalha contra seus próprios medos.

Um bom começo nesse sentido se daria através de um bate-boca áspero com a cúmplice por toda essa atmosfera envenenada: a secretária — a maldita intermediária entre o problema e a bendita solução, entre o calvário e a suposta alegria, entre o Grande Salvador e o inferiorizado.

Ela deve saber bem de sua importância para os enfermos, os prejudicados, e talvez isso justifique sua posição no pedestal da arrogância. Além de petulante, ela é bastante vulgar, mal arrumada e fisicamente desprovida de atrativos, mas se mantém séria (juro que não são avaliações, mas simples constatações). Não está interessada na aglomeração do recinto, com as pessoas que chegam e se escondem atrás de obsoletas revistas de fofocas. E eles, o desalinho, a feiura e a vulgaridade (que ali interagem harmonicamente), me excitam, mas não a calma rude e a indiferença hostil (que também se confundem), porque me instiga a análise de como as pessoas conseguem se ausentar do teatro a que estão submetidas, com que habilidade criam máscaras de si mesmas e com que força aturam tudo aquilo que, de fato, é insustentável. É gostoso cheirar essa omissão, toda fantasiada de obediência e resignação, e medir até onde nossa alma pusilânime vai.

Com aquele uniforme decotado a secretária deve realmente estar pensando que é atraente, que pode se desculpar através de uma descompostura cheia de falsa elegância. Contudo, três segundos de observação bastam para ver que nela tudo é estranho e maléfico, tudo é oco e descolorido e que ela sintetiza fidedignamente o que essa sala é. Mas penso que sua voz, a famosa doce voz das funcionárias dos Grandes Salvadores, essa (pelo menos) possa prestar.

– Senhora, por favor, não é permitido fumar aqui dentro.

Nem isso.

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