Imagem: Jorge Diaz. Licença: CC BY-SA 2.0. Cropped, several adjusts and lens fare added.

Cachorro corre

R Solino
Ensaios sobre a loucura
2 min readNov 23, 2019

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Sonhei que era um cachorro. Um cachorro baixinho e de grandes orelhas, como as de um cão selvagem africano.

Eu corria desesperadamente por uma estrada asfaltada. Eram dez da manhã e o sol queimava minhas costas. Eu suava, língua de fora, e sentia o asfalto queimando meus pés. Mas eu corria.

Não sei por que eu corria, para onde ia ou de que fugia. Eu só corria em frente, na faixa esquerda, indiferente aos carros que passavam por mim, ou só desviavam de mim, em grande velocidade.

Cansado, parei um momento e olhei pra trás, língua de fora. Um carro estava parado na pista, luzes piscando, e um homem se dirigia para mim. Ao vê-lo, voltei-me de novo e corri, corri com mais empenho que antes. Pra longe dele. Sempre em frente.

Enquanto corria, vi que aquele carro me seguia devagar, me acompanhando pela estrada, luzes piscando. Logo, havia outro carro ao lado dele, pela faixa do meio, e logo outro, na faixa da direita. Todos devagar, todos me seguindo.

Corri deles, corri. Na pista quente, sob o sol quente, sempre em frente.

Os carros que vinham pelo centro e pela direita passaram por mim. Virei à esquerda e corri em direção ao canteiro, onde o capim crescia livre.

Então, eu não era mais o cachorro. Eu era o homem que voltara ao carro e agora me via cachorro saindo da pista e entrando no canteiro central.

O homem que dirigia o carro falou Ele vai morrer, vai atravessar para a outra pista. E eu disse Não, pode ser que vejam ele, como a gente viu. E o motorista disse Olhe como esses carros correm, dirigem loucamente, ele vai ser atropelado.

E, de repente, eu não quis ver o que aconteceria comigo. Olhei para a pista em frente e tentei não pensar mais em mim.

Mas nunca mais deixei de pensar na solidão de mim cachorro. Em mim correndo, sem saber pra onde, mas com determinação. Sempre em frente naquela pista quente, como se soubesse onde ia. Ou de que fugia.

Nunca escapei daquela solidão que até hoje rói o meu peito. Nem do meu destino, que eu não quis ver. Meu destino cão.

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