Cheia de ideias

Priscilla de Oliveira
Ensaios sobre a loucura
3 min readFeb 11, 2022

O Brasil é o inferno dos negros, purgatório dos brancos e o paraíso dos mulatos e mulatas

João Antonio Andreoni, padre jesuíta, 1711.

Se eu me agarro nas suas pernas e na sua cintura

E aí eu venho e me agarro nos seus braços como um brinquedo da escola. De tarde. Preciso tanto.

E aí já estou com as coxas na sua cabeça acariciando suas orelhas com meus alguns pêlos descoloridos — foi na beira de tudo, na areia. Sua língua começa a entrar.

Pego sua cabeça pra me ouvir lá dentro dela, ressoando, cheias de ideias, mil teorias, assim falou Zaratustra, Borges, Heidegger, malemolência, funk, sentando, jogando, Led, escuta essa, essa música. Os pretos fazem a melhor música, mas Led chegou bem perto.

Sua pele é bem branquinha, a língua no meu pescoço, os dentes no meu ombro e Gilberto Freyre se enchendo de razão porém a mulher negra continua sempre solidão. Isso é algo que ela nem escolheria, ela vai e pega quem ela quiser. Na festa: os meninos, as meninas, ela pega, ela tem os cabelos, o poder, os caminhos, o dengo, mas ela está tão sozinha. Tem minhas mãos na sua rejeitando o passado enquanto o passado muito histórico desfila bem aqui, o passado que não vai se repetir. Só amanhã. Solidão e culpa.

A mulata divertida, talvez ela não devesse estar aqui. Deveria estar confraternizando com Congo, Angola e com os navios, Em Madureira. Jogação. Na noite, calcinha sudoeste. Ele é tão branquinho na pele, eu viro um mato e tomo conta dele com flores daninhas. Vou colonizando o barco do colonizador. É contragolpe do desejo.

A água salgada do poder que ele nem tem mais tá aqui me querendo e me levando na minha solidão, dominada. Gilberto Freyre jogou umas coisas que eram só ideias sem números. Acertou tudo. Comi os números das contas, as linhas, as estatísticas. Escuta essa: me agarro nos seus braços de meu brinquedo. Da escola. Cheia de teorias, cheia de ideias, café da manhã, faço um doce. Jogação. Cabelo de solidão e ele querendo tanto a mulher preta, me sinto inspirada a criar. Cabelo embaraçado na beira de tudo, do mar. São as maiores maldades vindas de Holanda e de África e principalmente de Espanha. Ele não tem chance. Ele virou o escravo do mercado porque agora ela vai passar usando suas jóias de crioula, também sapatos e vai pensar em comprar o homem exposto e pensar em aprovar o corpo branco muito brilhante nesse leilão. Dá o lance!

Caetano, Betânia, Marina Sena, Elza, Gil, Mariene. Ele não tem chance. Tenho muitas ideias. Anitta. Chico. Terrorista. Seus braços, suas mãos, suas pernas grossas e branquinhas, num navio caribenho, num navio em Salvador coberto de bençãos na primeira igreja encontrada pela subida no Pelourinho. Cheia de ideias de pecado e beleza. Oxum através do espelho. O Brasil nasceu na cama. A mulher preta divisando sua identidade e finalmente percebendo que deve pegar suas múltiplas cores e destinos, embarcar no imprevisível. Eu queria ser quem eu quisesse. Ele me deixa bem fértil de acreditar que posso ser quem eu quiser. As coisas vão por aí e nascem.

O Brasil se fez na cama, se você refletir.

Foi feitiço.

Você me deixa cheia de ideias que nem posso contar ao padre no sábado. Deitei na solidão da mulher negra, mas vou aguardar gozando a noite toda em cima das suas lembranças. É um segredo. Lembranças brancas. Colonizada. De Espanha. Sua capitania ausente.

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Priscilla de Oliveira
Ensaios sobre a loucura

Crônicas e historinhas safadas para pessoas que não voltaram pra terapia hoje. Quem sabe amanhã? @prillas