Coisas que não se joga na lixeira

Todo mundo quer ser salvo, e eu só quero dormir.

täkwila
Ensaios sobre a loucura
5 min readFeb 28, 2020

--

Miss B

Sabe quando você se distrai a ponto de ser desastrado?

Você erra a mão,
troca um nome,
esquece o degrau,
corta o seu dedo,
guarda coisas no lugar errado
e as perde de vista.

E não importa o quanto você se recorde do que foi perdido, de como você manuseou naquela última vez, não há lembrança alguma de onde foi que deixou.

Onde é que foi parar?
Será que ainda está aqui?
Só pode estar,
em algum lugar.

Mas aquilo que foi perdido ainda importa? Se não está aqui, se não é mais útil nem palpável. De que nos serve qualquer coisa se tudo que dela nos resta é uma aura ou apenas a sua ideia? Isso só é de serventia para a filosofia, e é concepção popular a de que a filosofia para nada nos serve. Nossas ideias não saciam a fome, não são capazes de matar nossa sede e nada fazem em alimentar nossa alma. Se de algo nos suprem, só pode ser de angústias.

As ideias perderam o seu ideal. O utilitarismo perpetuamente cobiçoso do ser humano modificou a curiosidade e as ciências do ser e transformaram metafísica, psicologia, educação e filosofia em fábricas cinzentas de ferramentas para a manipulação das massas. As ideias geraram a política e a publicidade, geraram a escola e o rigor disciplinário que originou o marginalismo. Em função disso, construíram-se sanatórios e prisões, vigorou-se a escravidão para suprir um ideal imperialista, deflagrou-se o preconceito cultural, racial e religioso. Houve o advento do exército para a conservação das ideias institucionais e da polícia para a opressão e vigilância dos que possam representar uma ameaça a essas ideias. Quão irônico e paradoxal é a realidade de que a nossa capacidade de idealizar e conceituar foi e continua sendo, ao mesmo tempo, nosso triunfo enquanto espécie e a nossa decadência enquanto humanos?

Como se já não bastasse preocuparmo-nos com as concretudes da vida, com ameaças bacterianas e virais invisíveis, com doenças endógenas, com possíveis acidentes fatais, além da perversidade dos homens, há também a multitude de aflições que idealizar demais nos proporciona. Se pudéssemos somente nos ater ao concreto, ao mundano, ao carnal e ao prático, certamente seríamos mais felizes. Mas seríamos mais repletos? Eis a questão.

Seríamos apenas um instinto vazio. Sem espírito, sem amor e sem esperança. Seríamos obra sem arte. E isto não é para dizer que todo ser que sente colabora para a sensibilidade. Há muito mais pessoas estéreis do que frutíferas por aí. Olhe para o mundo e veja o reflexo disso na extinção e na escassez dos rios em oposição à celebridade e a proliferação dos edifícios. Somos nós mesmos em maioria prédios altivos e solitários que se locomovem e colocam sombras uns aos outros. Colaboramos para a invisibilização do indivíduo. É o que a vida cotidiana nas metrópoles condiciona a fazer. Você engole para não ser engolido. Você discursa quanto à sua capacidade enquanto ferramenta útil nas entrevistas de emprego e elabora a respeito de sua versatilidade enquanto utensílio prático nos currículos.

Tentamos ao máximo distanciarmo-nos da nossa selvageria. Almejamos ao longo de toda a nossa história apagar o estigma que há em nós da nossa própria natureza. Vimos que não era possível apagar, então resolvemos suprimir. Vimos que suprimir não é o mesmo que anular, então resolvemos entender. Finalmente, entendemos que entender não nos permitiria escapar. Assim, decidimos disfarçar para não assumir. Cobrimos o nosso estigma com paletós, jalecos e uniformes. Curamos um problema criando outro problema para esquecer o problema primeiro. Fugimos de nós e tapamos o sol para que não víssemos as nossas sombras, para não lembrarmos de como de fato somos. E essas nossas sombras formaram a depressão, a ansiedade, a melancolia, o alcoolismo, o abuso de drogas, a compulsividade, a dependência emocional, a insatisfação afetiva, a impotência sexual e todas as outras fragilidades que não saber ser quem se é engendra.

E a boa verdade é que tudo isso que falei aqui não passa de uma enorme tangente. Como toda arte não pode deixar de ser. Uma tangente precisa não no sentido de ser certeira, mas de falar de algo que é preciso dizer e necessário refletir. É algo que não pode proporcionar o fôlego que preenche os pulmões, mas pode tirar o ar ou fazer inspirar com muito mais vigor.

Eu escrevi tudo isto enquanto só queria falar de amor. Eu queria dizer que joguei por engano aquilo que não deveria na lixeira. Que tal como naquele dia em que coloquei um pote de iogurte vazio dentro da pia e joguei a colher de aço que havia utilizado na lata de lixo, eu creio que ao longo da minha vida acabei jogando fora o amor, mas guardando pessoas.

Só que no que se refere ao âmbito das ideias, uma vez que uma ideia expira, toda a sua espécie é descartada. É lei da ciência.

Eu não sei amar, não acho que um dia amarei e tenho dúvidas se um dia o fiz. Talvez o que me aconteça é que no futuro eu serei contemplado por uma ideia mais profunda e mais perfeita. Mais pequenina em proporção, mas singela e poderosa. Seu nome provavelmente será Nina, inclusive. A partir daí é bem capaz de que tudo isso que me atormenta pouco me interesse.

De que nos valem os nossos deuses, nossas crenças e o nosso ideal quando tudo que de fato importa é mortal e fatal? Nosso maior medo na verdade é o de não sermos eternos. Já para mim o que mais me assusta na morte é a ideia de reincarnação. Eu não preciso questionar tudo isto de novo. Para tentar entender este mundo basta apenas uma vez. Nós tentamos salvar o mundo porque sabemos ao fundo que não podemos salvar a nós mesmos. Porque a nossa salvação era a nossa inocência. E a inocência é como um cordão umbilical: todos tivemos igual, todos fatalmente perdemos e achamos maluquice guardar.

A vida é uma eterna saudade de tudo aquilo que não agarramos enquanto tivemos. É como o tempo em nossas mãos. Quer compreender a sua significância? Perca-o. Muito vai estar compreendido e absolutamente nada estará resolvido na nossa última hora. Não haverá nada a ser dito. Completaremos o ciclo. Seremos apenas ideia. Uma escrita que de nada vale a quem não saiba ler. Acredite, você é muito menos importante do que pensa ser. Não se leve tão a sério.

--

--