Considerações acerca de Mauro

Léo Borges
Ensaios sobre a loucura
5 min readJul 22, 2021
Hippopx

O assunto do momento era sobre relacionamentos não correspondidos ou feridos por decepções, e Mauro, que acreditava nas coincidências e as tratava com um carinho exemplar, primeiramente, assegurou que, para qualquer situação, o padrão era a ocorrência perpétua do impossível. E citou a consciência, exemplo que, para a conversa, pareceu abstrato demais. Mas, não se referia ao simples pensar, e, sim, à maneira única de entendimento de todos sobre tudo. Mais que mero aglomerado de suposições, cada um de nossos conceitos se relaciona com ambientes, épocas, culturas e experiências, e a mente, por essa ótica, estabelece percepções a partir de inúmeros e coincidentes contextos. Certo que cada um de nós possui um modo peculiar de interpretar as nuances do mundo e das relações, mas, sendo assim, como adequar estas personalidades a outras, que também possuem semelhante natureza caótica?

O ponto crucial, de acordo com Mauro, é que ninguém se dispõe a checar interesses díspares para confirmar suas afinidades, até porque o desalinho é de tal ordem perfeito que o extraordinário acaba por se tornar evento comum. A relação entre o que eu e ele estávamos tratando poderia ter ficado clara aí, mas eu admito que precisava de menos sutilezas para conseguir equacionar suas ideias. Afinal, como lidar com tamanho embaraço existencial proposto e, paralelo a isso, encontrar a sonhada harmonia de um casal? Ou Mauro tinha definitivamente essas respostas, ainda que viesse com a tradicional visita aos devaneios das coincidências, ou talvez ele tenha identificado lamentações desnecessárias em meus apontamentos e, assim, resolvido apenas se divertir com a conversa. Fato é que não tive mais cartas na manga e restou-me encarar a conclusão com coragem, já que o responsável por digerir as minúcias desse, e de todos os outros debates, era sempre de alguém que não o próprio Mauro.

E você sabia que Mauro foi assaltado outro dia? Não sei se tem a ver com essas coincidências, mas ele havia falado sobre levar mensagens inclusive a quem o ameaçasse. Fiquei assustado, mas não foi nada grave, pelo menos ele disse que não foi. E olha que curioso: o cara não pediu dinheiro, mesmo porque ele não tinha. Ele quis algumas poesias, inclusive uma ainda incompleta… Eu realmente não sei de onde ele tira isso, digo, como ele consegue estabelecer diálogo com um marginal sobre suas teorias, citar poemas, e lembrar até que um de seus versos nem terminou de ser escrito! Vai ver o sujeito conhecia essa especialidade, já sabia que havia ali um material artístico valioso. Temos de pescar o que há nas elucubrações, porque o Mauro não esmiúça, não dá o enredo inteiro, fica uma coisa no ar, meio complicado de se entender, sabe?

É dessa forma. Certa ocasião, ele veio com o papo de que iria averiguar um dos lados. “Que lado?” e Mauro aquietou. Só pensativo ou magoado?, sei lá, não consegui decifrar a feição que assumiu, mas também não me esforcei muito para saber que tipo de avaliação pretendia. Vai ver nem ficou zangado e eu aqui especulando sobre sentimentos. Ele só garantiu que não queria mais incutir referenciais em tudo o que diz, pois afirma que não quer influenciar seus interlocutores. São essas respostas que me intrigam. Fala sobre transitar por áreas distintas, mas não diz que impressões busca. Bem menos que isso: não fala nem sequer se é o comportamento dos outros, ou o dele próprio, o objeto em estudo. Prefiro acreditar que Mauro esteja agindo com a ingenuidade que me parece ser sua marca original e que toda essa articulação, complexa e intuitiva, não esconda nenhuma loucura e tampouco má filosofia.

E eu fiquei sem reação quando ele falou que minha mulher possuía o viço da graciosidade. Declaração de amor explícita? E olha que o conheço faz tempo. Por esses entrelaces da vida, somos contemporâneos. Contudo, ele me dobrou quando disse que me admirava também, por motivos que não explicou. Perguntei se esse carinho era o mesmo fornecido à Rafaela, porque a gente sabe que existem variações, não é? Eu realmente gosto de mamão e de cajá, mas não quer dizer que esse interesse me permita romantizar sobre a feirante, por mais tenra que esta seja. É sobre isso, entende?, intuir que, apesar de lhe ser sabidamente vedado, um olhar lhe inspira o verso, e que, embora este emocione, aquele não se torna, por causa disso, disponível. Se isso é intenso, na mesma proporção é dúbio. Não vislumbro aqui sedução a uma mulher comprometida — comigo aliás — mas, o afeto soou-me acintoso. Para as explicações, voltou às coincidências. E, para meu espanto, foi além da dissertação sobre condições que nos levam a conhecer pessoas em tempos e locais que, sem esses encaixes mágicos, jamais as encontraríamos: cravou que certas belezas vêm como predicado atemporal quando incidem sobre a exuberância. Apesar da minha impaciência, não tive como não concordar.

Sim, e esse é o Mauro, né? Eu creio firmemente que ele não quer o mal de ninguém. E por falar nisso, lembrei-me de quando ele perguntou sobre quem definiu que alegria é melhor que tristeza. Não seria porque aquela nos aproxima do prazer, da vida, e, esta, da dor, da morte? Isso não te parece até bem óbvio? Mas, ele pontuou que o choro também nos dá bagagem e que não há conflito: tudo vem de uma forma que acaba por nos afetar positivamente. O tal lado que ele analisou, eu acho, foi esse, de ver beleza sob qualquer ângulo. Ele falou até sobre a porta da casa da dona Virgínia. Uma porta feita com um material realmente bonito, mas o que isso tem a ver? Divisão de lados. Bateu nessa porta para saber o som que emitia e, ao aparecer a dona da casa, ele lhe ofereceu uns cajus colhidos na beira da estrada. Virgínia andava reclamando do barulho que alguém fazia quando passava contando histórias pela rua, mas ficou feliz quando soube que era ele. Coincidências da vida. E te contaram que ele foi procurar o ladrão que levou aquelas poesias? Quis terminar a última.

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