Correndo perigo

Tomáis Mazalemaj
Ensaios sobre a loucura
5 min readFeb 22, 2021
O Violinista — Oswaldo Guayasamín (1967)

às vezes, ainda hoje, quando escuto algo como meus passos tamborilando escadaria abaixo, sou apanhada por aquela maldita melodia que fui tocar para Elísios.

Aí já o pior me invade, os comentários, o deboche às escondidas, a pena. Nessas, já se levantam amotinados meus demônios, invocando um estopim, rosnando aos trechos da carta que me saltam da memória. Um descuido e já minha timidez virou carniça nas mãos das criaturas, e grito a plenos pulmões pela janela da cozinha. Ainda mais se volta o episódio numa segunda-feira, como hoje.

Minha cara violinista, colega de pensão…

Como pedir tanto de você, quando não te ofereci mais que ambiguidades? Agradeço.

Por isso recebi com alegria a notícia de que aceitou me trazer a música que escolhi. Porque tenho certeza que a tocará com paixão — como se pudesse ler minhas intenções através da partitura. Porque você me deu muito, escolhi deixar a você esta carta.

os ratos moradores de mim são os primeiros a notar a lembrança, guinchando muito no temor da enxurrada, o desespero de suas unhas nas paredes, a verem já o perigo. A tubulação sanguínea, mal acostumada, doerá, tão grossa de calibre então, chacoalhando meu peito.

e já a cidade toda em expectativa: que musica virá esta noite? Enquanto a pele estuda o barulho torrencial da chuva e as artérias o susto das lanças elétricas no céu. No corpo uma composição de tráfego e vozes, o coração assustado, tivesse uma pausa para analisar o cenário.

Que alegria que será você! Aprecio a voz de suas cordas, seus golpes ardentes povoando o auditório. Dá arrepios…

Reconheça. Não acho que preciso dizer. Vá, que está tudo dito na cara do homem da primeira fileira, em cada uma de suas apresentações. E lá você, em pose de monumento, destilando das cordas os segredos do coração humano sem dizer uma palavra, sem sequer contorcer a boca ou levantar os olhos, perfeita serva dos deuses, responsável pela abertura da noite.

sempre atenta ao momento de retorno. Pois se num dia de maiores liberdades… acharei, assim, atravessando a avenida em frente a meu apartamento, esquecida de guarda-chuva, outra festa de garagem, hipnotizada na recordação da melodia. Esbarrarei lá no obstáculo dos corpos e os demônios. Como antes, as labaredas vão me passear nestes subterrâneos, e a respiração curta e violenta, a chuva no vestido e o suor evaporando seus odores na névoa do espaço lotado. Devorando tragos de bebidas baratas, em sua obediência, desejarei cair ao começo, para travar combate contra meu próprio corpo, no transe da música, nos guturais da cantora, até que volte a memória de sua carta, de minha performance.

Aproveite, que seu réquiem uma hora acabará, e livre da sua sina, tocada a última nota, poderá erguer enfim o rosto e despertar, ver as consequências do ofício para o qual os deuses te elegeram. Verá meu braço pender desta poltrona de veludo verde, cair vazio de minha mão um frasco tarja preta e em meu colo estas palavras.

Aí tudo começará e de novo, quantas vezes for preciso. Quantas já serão agora? Vai correr até mim. Você que em seu transe acorda todas as emoções, mas desperta desconhece o próprio sentimento. Mas, não se apresse, hesite, sinta como a emoção queima a boca de sua aorta, latejando o peito num desconforto tremendo. Se entregue! Aí o espelho, uma vítima ao seu dispor!

cada músculo arde, prenhe de violência porque as lágrimas se atrevem a rolar. É que, pulverizar o passado, não consegui… os sorrisos acanhados na cafeteria, os dedos apressados teclando palavras destinadas ao silêncio. Arranco o molhado dos olhos, a fúria me encarnando e a carranca nas faces. O irônico de ter desejado uma última noite de amigos, antes de desistir da minha paixão estúpida por Elísios.

Como se sente, ãhm? Você não é pura, Clarissa, pra quê desviar o rosto, deixar de encarar o reflexo? Não é vergonha o que você sente, você sabe, é o vermelho invadindo o rosa, é a delicadeza indo embora. Posso ouvir os acordes, a melodia, o impacto da ilusão aos pedaços.

a roseira na varanda é agora gatilho e frase usual em meu violino. O esmalte pink manchado dos cortes dos espinhos das plantas, dilaceradas nas garras que assumia ter, o rosto em choque e deleite, rasgando pétalas e a memória dos anos que o retraimento me roubou.

Ah, se essas palavras se instalarem em seu corpo, nas suas ações, será uma bela obra a minha, daí não terei vivido em vão. Que ainda aí a dor em seu punho. Que mais destruirá, além do espelho e da inocência? Os móveis, as quinquilharias, minhas pilhas de rascunhos e papeis? Tão comovente… Ah, que a música se inflame e traga para a composição o espalmar da sua mão em minha cara, dando ritmo, faça!, quantas e quantas vezes for necessário — mesmo depois de ver que corrompeu sua doçura.

anos após formada, na minha noite inaugural na orquestra, ainda precisava medir o som de minhas cordas contra as ondas do cais, como que pedindo autorização. Em qualquer momento a lembrança lá. Mas ali, me perco. Na fúria do arco e na pancadaria da água contra as fundações da obra humana. Como que perguntando ao mar, que revoltas carrega? Organismo tão eloquente, e eu aqui o que sei, que atitude me falta? Grito a sinfonia, antagonista aos relâmpagos, voz que brota de meus pés e atinge e estoura contra a tempestade, faíscas, porque clamo ao mar que a música me devore.

Como?, ãhm!, você, que é como é, poderia entender meu pedido? Já que o medo do escuro te define, e eu fui penumbra sempre. Por isso te trouxe aqui, num encontro, e te convenci a me alegrar com esta melodia — maldita! — para sangrar comigo e, sem saber mas já sabendo, me conduzir à morte neste barco de quatro cordas.

embriagada de inocência, a onda de meus cabelos no ar, o fuzilante dos faróis, o disparo da avenida, o rastro da raiva dos que habitam a velocidade dos carros, nenhuma ação caberia mais em mim. Um cerco de emoções. Pernas balbuciantes. Qualquer instinto colidindo em erro. Guardas apaziguam buzinas e um ímpeto insurge de destruir a maleta e o instrumento, de voltar aos estouros sobre o cais e mergulhar, ou somente morder-me a língua e ir encontrá-lo no inferno, para calar de vez essa sua eternidade!

Mas, por favor! Continue! Atire meus livros com raiva pela janela, rasgue as capas, a beleza de cada palavra. Que terei conseguido. Não são os meus pertences correndo perigo, e sim você, Clarissa, que perdeu sua pureza.

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Tomáis Mazalemaj
Ensaios sobre a loucura

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