DÉJÀ VU

F.
Ensaios sobre a loucura
3 min readDec 2, 2020

— Não existem registros de que alguém possa se apossar do corpo de outra pesso…

— Mas eu sinto! Ele está tentando tomar meu corpo, Ruan.

— Júlio, transplantes de órgãos existem a anos, se o que tu diz é verdade, existiriam registros.

— É claro que não, é isso que ele quer que a gente acredite, que nós não saibamos de nada e ele possa nos dominar.

O homem transtornado caminhava de um lado para o outro próximo ao parapeito do terraço, dando longas encarradas nos vinte andares de queda que o separavam das pessoas caminhando lá embaixo.

— Você precisa se acalmar, Júlio. Nós fomos abençoados. Um condenado a morte desejar doar os órgãos é quase impossível, nós temos que ser gratos a qualquer que seja o Deus que nos concedeu isso.

— Ele sabia. Ele planejou tudo isso, planejou tomar nossos corpos.

A discussão estava se tornando mais quente, Ruan tinha medo do que Júlio poderia fazer. Mesmo o conhecendo a poucos dias, já o considerava um amigo. Ambos haviam recebido órgãos do mesmo doador e sentiam que isso os unia. Mesmo que tudo tenha acontecido em circunstâncias estranhas…

Em um período de três semanas, o Ceifador da Rua 3, Claus Dresch assassinara quatro pessoas e por fim, adentrou calmamente uma delegacia, sentando em frente a um policial: “Admito a culpa pelas mortes, mereço ser condenado a morte. Apenas peço que meus órgãos sejam doados” — disse Claus. E após isso, não falou mais nada até o momento de sua morte.

A situação gerou inúmeras discussões nas altas cortes de direito do país, até que por fim, decidiu-se por dar seguimento ao pedido do assassino. A pressão da mídia e da família das vítimas foi crucial para que cinco pessoas recebessem os órgãos doados por Claus. O horror parecia ter finalmente acabado e uma sensação de justiça pairu. Como se tudo estivesse bem…

— Eu preciso dar fim nisso, Ruan. Não posso deixar que tomem meu corpo.

Júlio então subiu no parapeito do prédio, equilibrando-se fisicamente por sorte ou acaso, enquanto sua mente desequilibrava-se completamente.

— Júlio, desce daí por favor, você vai cair.

— Ruan, você é bom, não merecia testemunhar isso, eu sabia que viria aqui me ajudar, sabia que não deixaria que eu me matasse. E mesmo assim, me sinto obrigado a acabar com tudo, não posso deixar que ele vença.

Ao perceber a intenção do amigo, num lapso de adrenalina, Ruan saltou sobre o parapeito e estendendo a mão agarrou o ombro de Júlio.

— Desce comigo. Por favor, você precisa de ajuda.

— Ruan — disse Júlio calmamente, enquanto as feições de seu rosto se endureciam — Você já me ajudou.

Ao terminar a frase, Júlio pendeu o corpo para o lado. O movimento assustou Ruan que demorou a perceber que o amigo estava descendo de volta a segurança do terraço. O susto se transformou rapidamente em um sorriso de alívio. Que seria também o último sorriso dado por Ruan em vida, pois, em um rápido movimento, Júlio usou toda sua força para lançar o corpo de Ruan em uma queda livre até a calçada da frente do prédio. Sangue, cérebro e ossos espalharam-se por todo lado.

Júlio passou alguns segundos refletindo. Não fazia nem três horas que havia matado os outros receptores dos órgãos de Claus. Após a morte de Ruan, só restava ele vivo. Só restava a ele se matar e assim impedir que o Ceifador pudesse tomar seu corpo. Mas após refletir, Júlio perdeu a coragem. Não conseguia se imaginar subindo no parapeito e saltando, não teria força para isso…

Após voltar ao seu apartamento e ficar por lá por algumas horas, Júlio sai pela rua. Caminhou como se não dominasse o próprio corpo adentrou calmamente uma delegacia, sentando em frente a um policial: “Admito a culpa pelas mortes, mereço ser condenado a morte. Apenas peço que meus órgãos sejam doados” — disse Júlio. E após isso, não falou mais nada até o momento de sua morte.

--

--

F.
Ensaios sobre a loucura

First you take a drink, then the drink takes a drink, then the drink takes you. — Fitzgerald.