Das literalidades

Léo Borges
Ensaios sobre a loucura
5 min readOct 20, 2020
© KHBlack

Houve uma ocasião em que Vinícius encontrou a mulher que o preencheu. Mas, ela não era uma pessoa normal, e acho que foi isso, na verdade, que o atraiu. Vini percebeu de imediato que ela tinha um segredo que não era banal, e gostou, mesmo sem entender bem que tipo era. Em dado momento, ela foi paciente em explicar, muito embora a coisa tenha confundido ainda mais a mente de Vini. Ora, ele era uma pessoa sensível, que facilmente dispensava complexidades para dar aconchego ao que de mais simples havia nas uniões. Sendo assim, teria tranquilidade em aceitar, mesmo sendo a tal coisa surreal.

— Eu sou literal. Parece difícil de entender, eu sei, e fica ainda mais difícil quando eu revelo que foi você quem me fez descobrir isso.

E o segredo da Lívia era esse. Em princípio, não parecia muito complicado, afinal, uma pessoa literal tem a ver com ausência de metáforas, até mesmo de ironias, o que, por um lado, era bom. Mas Vini não acreditou que, se Lívia dissesse que estava vendo estrelas coloridas ao ouvir os acordes do namorado no violão, isso seria tal como descrito, pois estrelas habitam recantos da galáxia, no espaço infinito, e não o seu quarto, ou a praia, ainda mais as coloridas, que nem ele mesmo sabia se estavam catalogadas pela cosmologia.

Lívia, porém, confirmou: não era no sentido denotativo as levitações quando ela estava feliz, e certa vez ele notou-a mesmo flutuando na sala; ou as flechas flamejantes da paixão, quando lembrava dos beijos quentes. Numa ocasião, inclusive, precisou do extintor para debelar um incêndio que se iniciava perto da cortina. Era uma paixão tão intensa que a realidade, muitas vezes, deixava de ser, e ela percebeu isso quando algumas borboletas foram vistas em seu estômago no seu último exame de ultrassonografia. Lívia viu que eram muitas situações, mas qual das literalidades seria a mais perigosa? E a mais poética?

— Sra. Lívia, o que tenho para lhe dizer é uma coisa estupenda, perigosa, não sei, mas de fato inacreditável… Há borboletas vivas dentro do seu estômago! Não sei como pode… em 40 anos de medicina nunca vi nada nem parecido!

Lívia, que já sabia da sua condição, sorriu para o assustado doutor. Era ela, a paixão se manifestando em estado bruto, ou melhor, em estado delicado, dependendo do ângulo analisado. Mesmo em um compromisso médico, Lívia se lembrava dos versos de Vini para ela, “e a tarde não concebe noite sem ti / sabe que conceder seria desperdício / chegaria aquela lua que não sorri / como beijos que não possuem vício” e o fenômeno se manifestava instintivamente.

— Tudo bem, doutor. Eu sei que o senhor viu borboletas em mim, mas acho que não é assim tão grave isso, né? Tem a ver com felicidade, como naquele ditado popular de pessoas que estão vivendo um amor arrebatador…

Ninguém iria tentar entender e foi por isso que ela se abriu de forma séria apenas com quem a apoiava em tudo, Vini. E ele disse que a aceitava como ela era, com as coisas que via, com o que sentia e com o que se transformava. Até porque ele entendeu que era ele o causador daquilo e, em verdade, sentia-se orgulhoso por criar tamanha inflamação nos sentidos de sua amada, a ponto de tudo o que ela sentia, se materializar ou, em muitos casos, sair do normal.

— Às vezes, ouvindo todas essas coisas bonitas que você me diz, eu me transformo num pequeno colibri. E sei que, agora, você acredita nisso.

Acreditava, sim. Da mesma maneira como em algumas noites, ele via feixes iluminando o céu, incidindo em seu quarto. Eventos que seriam paranormais se ele já não soubesse: ela dissera que por vezes tinha tanta saudade que seus sentimentos se tornavam luzes cruzando o espaço. E esses flashes chegavam até ele. Além do aroma de Lívia, que tal como uma verdadeira flor, ganhava uma dimensão material pelo enlace químico que possuía com a seiva das letras decantadas por Vini.

— Sabe, Vinícius… tenho medo de que isso, em algum momento, nos afaste.

— O que quer que aconteça não me afastará de ti, porque confio nas poesias.

E tudo ia bem, com as literalidades inerentes a esse relacionamento tão peculiar, até o dia em que, num recital poético criado por Vinícius numa manhã ensolarada, Lívia sumiu. E o mais espantoso, ou nem tanto, foi que ela sumira enquanto ele baixava a cabeça para ler e terminar de declamar o último verso:

“Uma moça que sente as letras e por elas uma ave vira,

Que torna real essa inimaginável sensação exclusiva,

Que mais voa do que anda e mais ama do que respira,

Que da paixão se torna cativa, uma poesia persuasiva”

E onde ela estava? “Lívia? Lívia?”, ele chamou. Mas daquele instante em diante ele não mais viu o clima reconfigurado; o sol aparecendo sempre na mesma posição; nuvens não inventando mais claves, e os respingos do mar, distante centenas de quilômetros, deixando de umedecer sua janela. Vini inquietou-se por dias. O que havia acontecido com Lívia? Onde estava? Onde estavam os códigos e sensações sublimes e únicos? Onde estava toda aquela avalanche de amor? Foi quando se lembrou do temor que ela lhe revelara. E ele associou isso ao que um vizinho havia comentado dias antes:

— Um dos moradores pegou um pássaro que não para de emitir sons. E se eram cânticos, agora mais parecem lamentos. Odeio passarinho preso…

As coisas pareciam se encaixar! Naquele momento, ele foi até à janela e voltou a recitar o trecho de um de seus poemas, um que havia deixado Lívia em forma de rosa, com cabelos formando pétalas: “Há exagero doce / no que te faz linda / mas se assim não fosse / não seria você ainda”. O pássaro, alvoroçado numa gaiola no apartamento próximo, ao ouvir a estrofe, se agitou ainda mais. “eu me transformo num pequeno colibri”. Lívia se transformara num passarinho, como era provável, passou a cantar feliz e fora capturada.

“É cais em que atraca o aroma mais denso,

Por onde o meu fascínio se torna tangível,

Dentre tantos, aquele que me deixa propenso,

A achar o poema que me fora impossível”

Vini continuou a declamar se debruçando na janela do nono andar de forma tão arriscada e visceral que ele não percebeu que estava com quase todo o corpo para fora. Queria que Lívia escutasse seu recital e se sentisse amparada, que sua queda de amor não tivesse sido em vão. E aí ele caiu... como numa metáfora bem armada, ele se viu numa queda literal. Mas enquanto caía, teve certeza de que não deveria parar de recitar seus versos:

“Nenhuma poesia nasceu rasa,

Todas em teus olhos formaram abrigo,

E se de tantas linhas o amor criou asa,

Tu agora és pássaro e eu também consigo”

E o que parecia impossível, aconteceu, em Vini nascerem as plumas e seus braços tornaram-se leves; viu seu tamanho diminuir, mas sua agilidade aumentar; notou que não despencava, mas planava. Então, se aproximou da gaiola onde estava Lívia em um rasante perfeito e, com o bico miúdo, abriu o trinco. E foi então que perceberam que de todas as literalidades, a mais perigosa era mesmo a mais poética.

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