De novo e de novo.

Senhorita M.
Ensaios sobre a loucura
4 min readNov 3, 2021
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Meu rosto estava levemente inchado por alguma razão. Algumas partes de meu corpo doíam, assim como alguns sentimentos dentro de mim que reviravam-se de maneira brutal, sem qualquer piedade. Sentada sobre a cadeira preta com rodinhas, as paredes cor de rosa do quarto pareciam ter se expandido e triplicado o tamanho, mesmo com outros móveis e livros espalhados arbitrariamente pelo chão cinza. A solidão passeava novamente pelo espaço vazio, enquanto eu permanecia imóvel, como se tal ação retraisse as minhas chances de desabar a qualquer momento. Não havia lágrimas escorrendo sobre minha pele, apenas uma pulsão de morte.

— Eu preciso que você me diga quem você é.

A sensação de vazio era quase crônica, parecia um desejo sádico por sentir tristeza. Era tão inexplicável, que todas as sensações pareciam exageradas, impossíveis de dimensionar e mentirosas. A cada respirar, uma reflexão sobre o tempo. A cada reflexão sobre o tempo, um aperto no peito. Os pensamentos estavam desordenados e seguindo um fluxo incontrolável, porque tentava copiosamente lembrar quem sou. Talvez eu nunca tenha sabido. Talvez eu olhe para o meu passado tentando identificá-lo nas letras de músicas, nas poesias recitadas e nas literaturas contada como forma de me encontrar, concretizar algo que não sei o nome. Talvez eu olhe para o futuro e não consiga me encontrar nele, de novo.

— Me conta um sonho de vida seu? — Ruan me perguntou empolgado. Seus olhos eram castanhos claros brilhantes e sempre me lembravam sobre o cansaço, apesar do grande sorriso que parecia fixo em sua face.

Nos conhecemos em um domingo chuvoso, de maneira moderna, porém muito comum, ele me mandou uma mensagem elogiando a frase do meu status, que era parte da letra do interlúdio do álbum do Milton Nascimento. Conversamos por alguma horas seguidas e o deixei impressionado com meu repertório, o interesse de Ruan parecia genuíno, dei o prazo máximo de um mês para que aquilo acabasse e se tornasse mais uma decepção amorosa.

— Eu não sei, acho que não tenho nenhum — respondi frustando por completo as suas expectativas.

— Como assim? — Replicou intrigado. — Como alguém não tem sonhos?

Naquele momento eu só desejei ter mentido descaradamente, mas era algo impossível para mim, então, por alguns segundos, deduzi que ali era o instante que tudo começaria a ruir.

— Eu sei que é algo estranho e triste ao mesmo tempo, mas eu tenho uma visão pessimista da vida, porque eu sou materialista e não tenho fé. Eu não tenho sonhos. Talvez… eu queira uma qualidade de vida melhor — disse com pausas em um tom melancólico, porém acertivo, parecendo conformada com tal forma de pensar.

Aquelas palavras pareciam queimar a minha garganta de tão reais, então eu vou sentindo a tristeza fazendo morada em mim, de novo.

— Eu consigo entender, mas é um pouco triste, uma pessoa sem sonhos. Eu te aconselho a trabalhar nisso, mesmo que seja algo muito simples, é importante a gente ter sonhos, pra que a gente consiga ter uma perspectiva.

Ruan falou aquelas palavras parecendo um coach como se eu não tivesse uma graduação, como se eu não entendesse a importância da utopia, como se ela não estivesse ligada as minhas condições materiais.

— Eu sei… mas não é tão simples quanto parece. Eu sei de onde isso parte, pelo menos tô tentando entender, mas é bem difícil manter expectativas e esperanças no Brasil atualmente. Eu sei que isso é um pensamento que anda comigo por um bom tempo, acho que desde adolescência — relatei com um certo desconforto por estar expondo meus sentimentos a alguém que conheço há cinco dias. — Hoje eu só quero estar estável.

— Sem julgamentos, eu entendo. Eu tô cansado de falar o quanto a vida é complicada, mas eu sinceramente não sei o que dizer… Eu te entendo, porque também sinto essa vontade de ter estabilidade, desde sempre, proporcionar uma vida melhor pra quem eu amo, mas o sonho da minha vida é viajar para o exterior, nem que seja só intercâmbio, queria viajar pra Europa ou Ásia, aprender uma língua nova.

— Isso é muito legal — disse com sinceridade e tristeza nos olhos.

— A vida já é dura demais pra não sonhar.

Tive a impressão que estava sugando as energias vitais de Ruan sem querer, enquanto as minhas se esvaiam, eu era capaz de sentir ela indo embora de mim, eu a observava passivamente. Era difícil explicar para os outros a perspectiva melancólica quase patológica que tinha da vida.

— É cansativo, eu sei… Eu problematizo tudo, reflito sobre tudo. Uma coisa simples virou uma grande questão — falei respirando fundo sem qualquer intuito de contornar a situação para mascarar aquilo que sou. — Não quero parecer niilista, mas…

— É interessante conversar com você, eu tô percebendo que as nossas conversas começam com um assunto e terminam com reflexões sobre a vida. Mas o excesso de problematizações é cansativo sim, a longo prazo.

As palavras de Ruan se assemelhavam a uma confirmação de tudo aquilo que eu estava sentindo há algum tempo. Era um ciclo maldito que cansava todos ao meu redor, incluindo a mim mesma. O sentimento covarde da culpa parece não ter escapatória.

Abri a porta da sala de casa, ainda refletindo sobre aquele diálogo, tentando entender as complexidades em mim, tudo aquilo que foi esmagado pelo cotidiano. Caminhei devagar até o quarto, tropecei em um livro do Nietzsche, joguei a bolsa sobre o tapete no chão e o celular na bancada, soltei meus cabelos e coloquei todo o peso do meu corpo sobre a cadeira e permaneci em silêncio, imóvel, calculando os danos…

E calculando os danos e calculando os danos
E calculando os danos e desmoronando sempre. (Victor Xamã)

Senhorita M. : eumariana.medium.com

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Senhorita M.
Ensaios sobre a loucura

Histórias em que eu me encontro, eu conto | Aspirante a escritora | Contista.