Derrota familiar

F.
Ensaios sobre a loucura
2 min readAug 31, 2020

Eu tinha dez anos quando vi papai chorar pela primeira vez. Assistíamos um jogo disputado na televisão, vencíamos por um a zero e com vinte minutos do segundo tempo fui ao banheiro. Quando voltei, a partida estava empatada. Meu pai me olhou duramente por alguns segundos, mas logo voltou sua atenção pra um ataque perigoso pela nossa direita. Quando o jogo terminou, e antes que eu pudesse me levantar e sair porta a fora, meu pai me chamou na cozinha.

Durante vinte minutos papai detalhou a primeira partida que assistiu em um estádio. Final da copa do mundo de 1950, Brasil contra Uruguai. Nossa seleção era favoritaça, havíamos vencido a Suécia por sete a um — isso mesmo, sete a um — e a Espanha por seis a um. No Maracanã, milhares de pessoas gritavam, o estádio comemorava como se o jogo já tivera acabado. Meu pai vestia o manto branco da seleção, que originalmente era de meu avô e havia sido dada a ele como um amuleto de sorte. Segundo meu avô, sempre que usará aquela camiseta em um estádio, nunca vira a seleção perder.

Ao ouvir esta parte, percebi os olhos de meu pai marejarem. pois com trinta minutos de jogo ele se levantou para gritar junto aos outros torcedores, enquanto meu avô seguia silencioso e atento demais ao jogo para perceber o que o menino estava fazendo. E nesse momento meu pai havia tirado a camiseta branca da seleção e girava ela no alto como fazem os torcedores até hoje. No êxtase da alegria papai esbarrou em meu avô que ao virar-se para ralhar, viu que o garoto não estava mais usando camiseta. Assustado, meu avô tentava arrancar a camiseta das mãos de meu pai para colocar ela de volta no corpo do menino e o Uruguai avançou pela direita. No intervalo de alguns segundos, meu pai entendeu o que acontecia e tentava puxar a camiseta para si. Enquanto ambos se debatiam em tentar fazer a mesma coisa, o Uruguai fez o dois a um que calou o estádio e mudou a vida de minha família.

Meu avô nunca perdoou meu pai por tirar aquela camiseta e no fundo eu sempre soube que nem papai se perdoara. Conquistaríamos o mundo, mas até hoje não o pudemos fazer em terras brasileiras, porque meu pai tirou a maldita camiseta.

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F.
Ensaios sobre a loucura

First you take a drink, then the drink takes a drink, then the drink takes you. — Fitzgerald.