Destituída

Não existe mais

H.
Ensaios sobre a loucura
2 min readOct 28, 2020

--

Imagem por Filippa Edghill

Tenho muita dificuldade em te dizer, exata, o que sinto. Não é só pêlo e calafrio, não é só uma desabilidade contínua, nem um exercício constante. Sinto que perdi o viço das palavras; sinto que virei pó, não, pior, sinto que tornei-me menos que um grão. Uma partícula não viva, moribunda, que só sofre, e suspira, e sofre, e suspira. Às vezes, se expõe, mas sempre há um fundo de desânimo e inautenticidade quando se expressa.

Isso porque não ando me fazendo presente. Já não há verdade nas poesias que insistem em retratar um sentimento indizível. É impossível ser lírica o tempo todo. É impossível tecer-me bonita no sofrimento, transmutando-o em palavras. Tampouco é fácil escrever sobre o que dá engajamento o tempo todo. Não é sempre que quero falar de amor, entende?

Não é sempre.

Porque o amor já possui pouco espaço dentro de mim. A vida vai comendo por dentro, o tempo vai corroendo o que a vida não se encarregou de digerir. Decidi mudar meu nome de “destituída” para indigesta e indisposta — o primeiro não me parece mais o suficiente. Destituída de quê? Afinal, todos somos, a Grande Falta, etc e tal. Não que não todos não fôssemos indigestos e indispostos. Na realidade, se trata mais de mim do que dos outros.

Meu repertório continua se repetindo. Um ciclo inquebrável. De viva, passo a morta; de potente, passo a Por Que Eu Não Consigo Sentir Nada?, e a maldição continua em linhas tortas. Queria fazer deste texto um Sessão de Terapia IV, contudo, penso que este é maior do que isso. Continuo precisando de terapia, é claro, mas este em específico é sobre ser destituída e estar indigesta e indisposta constantemente. É sobre ir perdendo a minha lírica aos poucos, caminhando uma estrada tortuosa, e, enquanto o faço, ir desmontando peça por peça do corpo; enquanto o faço, ir esquecendo-me de quem sou e do que vim para construir.

Como já dizia aquele famoso tuíte:

Autoconhecimento, meus queridos.

--

--

H.
Ensaios sobre a loucura

Um pouco mais que um grão de areia, um pouco menos que um cavalo.