Diante da Lei

Baseado no conto homônimo de Franz Kafka.

Täkwila
Ensaios sobre a loucura
4 min readMay 17, 2022

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Fotografia: Walciney Barbosa

Diante da lei há o leito e a luta. Diante da lei há a garganta e o choro. Diante da lei há um guardião epônimo. E ele nunca abandona o seu posto.

À lei cabe perpetuamente prevalecer. Se diante de alguns prevarica assunto é porque para a lei atenção tem cifra e o desinteresse é ponto de partida de toda negociação.

Diante da lei espera Maria. Maria parcimônia ferida. As vezes que algo reivindica alega ser porque sofre. Traz sempre consigo a feição contraída e o olhar inquisitivo como quem aguarda o resgate.

Diante da lei espera Francisco. Francisco diplomacia de armistício. Procura com o olhar somente quem alvejar com sua resposta. É certo de si e certo dos outros. Não é preciso dizer que exige às vezes até mais do que lhe compete o direito.

Maria é branca como bandeira de rendição. Francisco escuro como o olhar de quem não morreu.

Ambos perante a lei permanecem.

Enquanto a lei discorre sua oratória

pernóstica.

Luar e raiar do sol parecem em um dado momento obter a mesma propriedade. Piedade e perfídia cindidas por fossas e cartilagem. Uma boca incisiva e olhar oblongo que começa nas órbitas e termina longe de quem se avista. Mira a pessoa e acerta a porta de saída. Assim é o olhar da lei.

Conforme os anos passam a razão vacila até que indignação perde agudeza. Revolução e complacência operam em comunhão de número. A boa revolta vem em bando como vem também a mais bem adequada obediência. Todo movimento é atitude coordenada. Se dois vão por um caminho, um terceiro seguirá apreensivo. É apenas natural.

Quem é contra a lei luta sozinho duas pelejas. Uma frente à injustiça dos poderosos e outra perante a indiferença de seus concidadãos. Não há calibre mais poderoso que o silêncio de quem enxerga e entende. Não há jugo maior que o de um sorriso civilizado.

Ao final da lei a justiça padece. Esconde a sua cara como fez a verdade, há muito tempo atrás. Nem o guardião a conhece. Tudo que conhece é a sua função. Desconhece a justiça, a verdade e não nasceu com dom de elaborar perguntas. Simplório a tanto que consegue acreditar que é feliz, como fazem todos que se distanciam da ideia para se aproximar da certeza.

Maria e Francisco perseveraram até que dia virou noite e noite e dia viraram muitas décadas. O corpo de Maria cedeu ao tempo que conforme emacia a vida faz aproximar toda coisa para perto do chão. A passo e passo foi subtraindo paralelepidos da estrada. Se deitou sobre cama de terra arada pelas filhas. Virou a face para a lua, falou das estrelas e dormiu.

Francisco arrastou o cabo da vida à frente. A saúde deteriorou aos poucos. As pernas firmes e irrequietas passaram a requerer bengala de pajem. Em pouco a pior das pragas e a mais oportuna se instaurou. A cabeça dobrou depois do corpo e adoeceu. Na aceitação o triunfo da miséria. Por tanto Francisco deixou de andarilhar e se assentou. Até que reclinou ao leito por completo feito um paraplégico. Aguardando ali a lei que viesse ou que fosse de vez.

Em uma hora escura e sabática, com olhos estreitos Francisco perseguiu mais uma vez a lei por debaixo da testa. Retornou o olhar para si e emergiu da escuridão do outro lado com a face voltada para a lua, igual fez Maria.

O guardião ouviu atento falar de tudo que tivera perdido. Francisco explanou até os seus pretextos. Ao fim do monólogo estendeu sobre o resto da via um tapete longo de muitas reticências. Abandonou a fonética de vez e passou a produzir sintaxe somente no olhar.

Com a ponta final do fio da vida trançou uma frase de palavras átonas e usou todo o fôlego que tinha na confecção de uma interrogação. O guardião o observava como a um objeto obsoleto cuja única virtude que lhe resta é auto-evidência. A aura enternecedora do que já foi e já não tem mais utilidade além de cativar quem tem memória e os que têm tempo a viver.

A questão pairou pelo ar como uma notícia trágica. Flutuou de lado a lado até que caiu por terra enquanto o guardião se mantinha em riste atento à alguma coisa suspensa no ar como a voz de um vulto ululando no éter. Disse assim mais adentro de si do que afora:

‘Eu nunca tive poder sobre você, Francisco.’

Francisco agora apontava os olhos para o horizonte. E com a boca esboçava dizer algo de grande importância. Mas não dizia.

O guardião trancou a porta, pendurou a chave e encerrou sua função. Pensou em Francisco. Também no seu inquérito. Entrou em casa, guardou o uniforme, lavou suas mãos e se deitou. No escuro do seu quarto viu à distância de uma palma ou talvez muitos metros um rosto. E dormiu pouco antes de alcançar algum entendimento.

Leia o conto ‘Diante da Lei’, de Franz Kafka

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