Do estranho hábito de assombrar crianças

André D’Assisi
Ensaios sobre a loucura
2 min readApr 3, 2019

“Boi, Booi, Booooi…”, cantava vovó. Nada melhor que a música invocando o monstro sinistro. Os versos eram um ótimo argumento para eu pegar no sono bem rápido. Era dormir e ficar a salvo. O Boi da Cara Preta, desmotivado, ia cuidar de outros afazeres, mastigar meus coleguinhas de escola talvez.

Hoje acho o método de dormir para fugir do perigo um pouco questionável. Parece inadequado para quando a vida e dignidade que me restam estão em risco. Eu seria resistente, por exemplo, a deitar tranquilamente sobre a calçada depois de ver aqueles dois caras de moto me seguindo. Mesmo sabendo que me alcançariam, preferiria estender as mãos — umas delas com o celular bem à mostra — e esperar.

E se eu ficasse acordado apesar da cantiga ameaçadora da vovó? O que o Boi faria? Devemos temer os que conhecem nossas fraquezas, pois são quem mais tem poder sobre nós. Daí o medo das reuniões de família, sempre com os tios chatos nos lembrando de fatos constrangedores das nossas vidas. E se, diferente dos meus tios, o Boi desconhecia aquele apelido que eu odiava, sabia, por minha própria avó, do meu ponto fraco: medo de caretas.

Delatar netinhos para monstros maus devia ser contra o Código de Ética das Avós, isso parece óbvio. Talvez eu tivesse motivos sérios para cortar laços com a vovó. Mas a maldade da cantiga para dormir era compensada por suas cócegas e abraços fofos.

Foi só eu crescer para perceber: vovó tinha suas razões. Por trás de músicas como Boi da Cara Preta, existe sempre um adulto desesperado para pôr a criança no devido lugar na Terra. O que é uma criança? Uma pessoinha anárquica e travessa. No útero chutava a barriga da própria mãe quando esta dormia, mergulhava o dia todo, comia pelo umbigo, não tinha hora para deitar… Depois, chegando aqui fora, quer continuar a fazer tudo do mesmo jeito… Aí a ameaçamos com o Boi da Cara Preta para convencê-la a fazer coisas boas e corretas — no caso, dormir à noite como qualquer pessoa normal. E se temos o cuidado de fazê-la dormir antes que o Boi a pegue, a canção educativa é irreprovável.

Preciso ver se, passados tantos anos, vovó ainda se dispõe a cantar para mim. Vou pedir músicas sobre medos atuais, temas como fatura conjurada e aluguel possesso. Espero que seja como antigamente: ela cantando, eu dormindo e o perigo a sumir. Pena eu estar cético quanto ao método e preferir me angustiar ou esperar o inevitável!

Valei-me! Eu não já paguei isso?!

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