Duração

H.
Ensaios sobre a loucura
2 min readApr 20, 2018
Daqui

Teci seus lábios no momento em que deles precisava; na sede da minha própria boca. Inventei-lhe: a nuca que se arrepiava com meus beijos, os braços que necessitavam arduamente dos meus, as pernas que se entrelaçavam nas minhas. Construção é o que você é: é triste apelar para o conceito de amor egoísta, mas tudo que fui nessa relação foi essa pobre característica — eu a construí com base no que eu precisava e a fiz consentir com meus próprios desejos, fi-la acreditar que sua felicidade confluía e coexistia com a minha, que até mesmo se confundiam, como dois seres que se tornam um único.

Eu confeccionei as ondas da sua barriga, os cachos dos seu cabelos e o sorriso lascivo do encontro tardio. Observei a mim mesmo ao lhe transformar em óleo, para deslizar em mim e comigo, em prata, para colorir e envolver meu dedo; por fim, ao lhe fazer assumir uma forma que não era sua, e sim que se encaixava perfeitamente em mim: a da massa de modelar. Os meus olhos eram apáticos: as palavras eram o que lhe moldavam; você, tão esculpível, tão suscetível… a arte e o artista; a cria e o criador.

Não me surpreendi quando nossos dedos não se encaixavam mais. Nem quando sua saliva não era mais produzida. Tampouco quando eu não a enxergava mais completamente, passando a ver apenas resíduos do que, um dia, você fora o que eu lhe fiz. Compreendi ao olhar-me no espelho: também não me reconhecia — via os restos sólidos do meu conceito sob seu julgamento.

O amor que existia era a união dos meus restos e os seus — e, ainda, nenhum deles correspondia fielmente à realidade.

--

--

H.
Ensaios sobre a loucura

Um pouco mais que um grão de areia, um pouco menos que um cavalo.