E quem nunca morreu — quem não se deixará matar?

Täkwila
Ensaios sobre a loucura
4 min readJul 10, 2022
Raphael Lovaski

Na raiz do medo não há água, é seco
Como os olhos de quem machuca por querer.

Já quis muito ser herói.

No universo das histórias a maldade
Faz sentido. Criança não morre.

Não ter medo é enxergar quem vem lá.

Constatei que o mundo me contava coisas
Na voz de confidentes que não queriam me dizer,
Mas tinham muito que falar.

Anotei todos seus relatos em tatuagens
Por debaixo da minha epiderme.

Vários adversários tentaram me aniquilar
Com convites e gargalhadas. Amáveis
Todos eram. Todos eles meus irmãos.
Gentis e obsequiosos, tão dispostos
Quanto ligeiros na coleta do espólio.

A mão que pratica a bondade,
Oportuna e oportunista, carrega
A bíblia em sua palma e a má fé
Entre os dedos.

Por isso me aponte um ser de puro coração.
Me convença que o folgo da infância perdura,
Ainda que a reuma da razão roube o rubor
Da palavra e celeridade dos ventos.

Me mostre o favor e a indiferença,
A companhia de um bom samaritano.
Diga alguém que diz o que sente, que
Sente o não-dito. Diga daquele que
Guardou a franqueza, a lepidez e
Que não tenha sucumbido
No trajeto entre a vontade,
A necessidade
E o encargo.

O menino morre nas mãos do homem,
A menina morre nas mãos do homem
Talqualmente.

História se arrasta, o rastro alastra,
Traz fascite, faz voçoroca, tudo anda,
Sempre à frente. Avanço avança,
Só progresso que atrasa. Protela.

O inalienável sonda o abismo
Sem amparo ou benquerença,
Olvidado e vexaminoso. Coxo,
Sorumbático, ímpio, carecido,
Sem-teto, sem-terra e sensato.
Sua força é o seu peito aberto,
A fraqueza o peito dilacerado.
Aparta do mal ao fim da noite,
Se exonerando da lembrança,
Assumindo de novo seu posto
Ao subir do sol. De véu e faca,
Sai pela sua porta alquebrado
Como anti-homem vitruviano,
Arcaico arcanjo antediluviano
Adoecendo isolado do mundo.
Voa atravessado, em diagonal,
Pousando ao pé do ponto cego
E escavando sem pincel, cinzel
Ou lupa os vestígios de uma luz,
Conservando em seu alforje o facho,
A chama do fogo enigmático de uma gruta
Outrora escura onde o mistério da poção elementar
Se liquefaz.

Verdade não é objeto,
É procura, atitude, é ruptura
Da carne, é a parição, rompimento
Do tecido, da pele, do miocárdio, garganta,
Medula, mitocôndria — a barba eriçada, a urina amarela,
A dor, odor, insônia, a fome, a fúria, o sangue, o soluço, susto —
e silêncio.

Tudo novo. Tudo sempre. Ardendo pira.
Ensandecendo a noite acerca de um sublime fogo
Cujo à volta todo o povo que anseia o fim do dia
Vai deitar debaixo do céu de orvalho dos vadios
Aos cuidados de sonho e seu afeto
Sadio, porém sádico como também
É a cortesia da morte, parentela
De mesma guilda, mesma casta.

Perdoa a minha honestidade.
Perdoa tudo. Tudo que incomode.
Perdoa o meu medo, minha pouca voz.
Perdoa tudo que não é meu
Que seja comigo.

Não existe água aqui. É pedra
— todo macho chama Pedro — .
Toda terra é fruto dela. Eva
Era tão valente, tão voraz,
Que devorou a verdade,
Engoliu seu prêmio —
foi poeta por inteiro.

Tenho sede demais.

Muito mais valeria ser cego, ter tino.
Aclimatar o bico seco, ostentar
Olhar indistinto. Vestir sempre
A roupa do vem e vai.
Falar de ontem como
Se não fosse outro —
igual a outro —
Parecido com o de outrora
Daquele dia, daquela hora
Prestes a mudar o assunto.

Viver é ter uma vontade, e só.
E a manter segura, custe o que custar.
É cuidar de si como quem ama,
Não quem tolera.
Compreender como o que perdoa,
Retaliando como faz a fera, que é o que é,
Obediente somente à sua natureza,
E que nunca trai a si.
E usa só o que é vital.

A certeza do ataque atrelada
À incerteza da sequela.

Pois é preciso viver, então
Se faz necessário não
Se deixar apagar.

Por essa razão luto com rigor.
Estico os joelhos, tenciono os braços,
Ergo minha voz. Emprego tudo que tenho.
Tudo porquanto Deus me deu. Exceto desdém.
Pela honra que me há, da obrigação de poder ser
Bem mais. Por crescer muito maior
Do que o agora. Por todo que já foi,
Não mais é. E todo que é, e não vai.

Com tudo, a todo que possa,
Até o sem-poder,
Faça.

E apesar do medo que vem
De quem vê,
Vá.

Pela verdade,
Pela vida.

Por nós,
Por voz.

Que seja.

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