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Rodrigo Goldacker
Ensaios sobre a loucura
11 min readAug 26, 2020
Photo by Om Prakash Sethia on Unsplash

E todos ao redor sobem ou caem
E crescem ou descem
E os amigos antigos ficam decadentes
Ou levam a cabo grandes projetos
E ficam ricos
Ou ainda moram com a mãe
E têm filhos
Ou divórcios
Ou não saem do lugar
E tudo parece ameaça,
Tudo parece adulto demais,
Triste demais,
Ou feliz demais,
E eu nunca saí do país,
Fulano mudou para a Austrália,
E eu tenho um bom emprego, que sorte,
Ciclano tá quase passando fome,
E tem daqueles que se distanciaram
E ninguém mais tem muito assunto direito
E às vezes encontros ocasionais na rua
Eram oportunidades de repetir as mesmas histórias,
De parodiar por alguns minutos quem tínhamos sido,
E tem daqueles que seguiram unidos,
Dos quais fui eu quem se afastou,
E eles ainda se reúnem e riem,
Mas o que gostavam em mim era só teatro
E as peças deles agora não me entretém,
Não sei mais interpretar meu papel;

Sei interpretar outros, porém,
O sorriso simpático na reunião,
O estresse pelas contas,
A conversinha com o moço do Uber
E todas aquelas outras conversas
Que ficam só na cabeça,
Aquele estado alcoólico de quem sabe beber,
O bastante para dar algumas risadas,
Mas não para esquecer da roupa no varal;

E eu que aqui estou,
Será que dei mais certo?
Menos certo?
Comparado com uns, sinto-me um fracasso,
Comparado a outros, um grande sucesso,
Olhando uns, parece que não saí do lugar,
Não mudei nada, nem evoluí,
Já olhando outros, parece que me tornei algo
Enquanto eles permaneceram estáticos e me cansam,
E todos, de todos os jeitos, incomodam,
Tanto os que estão distantes e queria mais próximos,
Quanto aqueles com quem não quero nunca mais falar,
Mas que insisto em observar de longe,
Sendo telespectador lento de para onde suas vidas estão indo
E pensando se minha vida vai para algum lugar;

E todas essas ideias se confundem, para piorar,
Quem parece fracasso numa coisa
Parece sucesso noutra,
Quem não quero ver nunca mais
Também me dá saudades,
Quem nisso parece parado,
Naquilo se movimenta;

E a frustração bate à minha porta
Como alternativa atraente à persistência
E eu não tenho a mesma energia dos dezoito anos para sonhar
E tudo que eu quero ser e fazer exige mais otimismo do que me resta
E tudo parece difícil demais para valer a pena
E nada parece suficiente diante da morte
E desperdiçar tempo da vida limitada parece estúpido
E a pressão por fazer enquanto é tempo me sufoca
E daí nada sai, tudo seca,
E os dias são curtos demais, as responsabilidades muitas,
Quando sobra tempo, tudo que quero é dormir,
E quando olho para o céu, sinto-me vivo,
E tenho que aprender a dirigir, mas tenho medo de acidente,
E agora mais velho não consigo me separar do motoqueiro aberto no chão
E o sangue dele no asfalto podia ser meu
E pode ser meu,
Sinto ser meu;

E todos os números para a vida prática são grandes demais,
Os preços dos projetos são sempre pagos em décadas,
Tenho tão poucas,
E os financiamentos se apresentam como pactos malditos duradouros
E para conquistar tem que economizar
E as contas vão se quitar em alguns anos se tudo der certo,
Mas não vai dar para viajar se quisermos mesmo fazer isso,
E eu paguei por anos as compras de quem me alugava imóveis,
Pintei as paredes das casas que não eram minhas,
Carreguei minhas caixas para lá e para cá,
E o trânsito vai ser muito ruim quando precisar ir trabalhar?
E será que a crise vai afetar meu negócio?
Será que meu bairro vai ficar perigoso?
Será que terei filhos?
E se os tiver, serão felizes?
E como olharei para eles e direi que não posso lhes entregar
As mesmas oportunidades que tive e que desperdicei?

E será que vou viver muito?
Será que falta pouco?
Será que vou ter tempo de ficar velho?
E se ficar, serei mais um dos velhos amargos,
Antes mais um dos adultos quebrados,
Será que morrer dói?
Será que dá pra viver sem doer?

E todos que conheci vão morrer também,
Cada um de um jeito e num momento diferente,
Alguns antes, outros depois de mim,
Alguns de formas terríveis, outros de formas tranquilas,
E não vai sobrar lembrança do que vivemos juntos,
Nossas histórias vão calar e outros vão pisar indiferentes
Por cada lugarzinho que tinha algo de especial para nós,
Algo este que como nós mesmos se perdeu;

E aquele bairro já mudou tanto desde quando o frequentava,
O ponto de ônibus mudou de lugar, aquele prédio não estava ali,
Ali era menos perigoso, ali foi onde me assaltaram,
Eu conhecia todo mundo naquele prédio do colégio,
Agora não conheço ninguém,
Aquele professor se aposentou,
Aquela moça da loja que conversava comigo
Mudou de emprego e eu nunca mais vou ver
E aqueles rostos rotineiros do mesmo ônibus
Também nunca mais verei de novo
E tudo foi embora, cada um para seu canto,
A juventude fechou as cortinas,
Cada um levou seu espólio de guerra
E quem sobrou no fim de festa não teve o que levar,
Mas quem saiu antes perdeu algumas músicas boas
E os lugares para onde fomos não tocam nada;

Aquele grupo de garotos na praça parece com a gente,
Só as bebidas baratas que mudaram de nome
Porque as do nosso tempo ficaram caras demais
E as roupas deles são um pouco diferentes
E as músicas que são segredos de sua geração estão guardadas ainda
Como eu guardei as minhas até ser tarde demais e de repente
Descobri que não as guardei direito,
E elas deixaram de ser segredo e todo mundo passou a conhecê-las,
Fazendo as melodias que cantarolei parecerem banais, bobas, fúteis,
E ainda assim eu as escuto até hoje
E os novos álbuns da banda não foram tão bons
E as melodias de agora podem brilhar, mas serão também tudo isso depois
E eles vão rir de mim com meu notebook com seus celulares
Do mesmo jeito que com meu notebook ri dos anteriores com suas televisões
E alguém vai rir deles depois com alguma outra coisa que eu não entenderia,
E minhas opiniões vão parecer ingênuas ou antiquadas
E eles vão se ressentir dos erros da minha geração
E reclamarão justamente da injustiça de viverem
Num mundo pior;

E quando eu andava pela praça do largo da batata nas manhãs de 2011
Tudo parecia ter gosto de sonho
E todo mundo parecia otimista e feliz
E o mundo parecia fadado a se tornar cada vez melhor
E hoje os rostos nas escadas rolantes da estação daquele metrô
Parecem todos cansados, exaustos, cínicos e desesperançosos
E alheios e estrangeiros, já que perdi a comunhão urbana,
E ninguém mais acredita em futuro nenhum
E todo mundo sabe que amanhã vai ser pior ainda
E que os jovens de agora terão uma juventude pior que os de antes
Porque o desemprego só vai aumentar
E a moeda desvalorizar
E as cidades vão entrar em colapso
E o ensino vai ser sucateado
E as máquinas vão tomar tudo!
E as tecnologias vão controlar nossas vidas
E os adolescentes vão fazer piadas disso
Com seu sarcasmo juvenil que mascara inseguranças,
Vão tentar existir nas esquinas, nos cantos sujos das praças,
Vão tentar voltar para casa depois da festinha
Sem morrerem ou serem assaltados no caminho
E o metrô que abriu depois de mim vai facilitar essa volta
E no meu tempo ainda nem Uber tinha
Para voltar quando a estação ainda estava fechada,
Então ficávamos esperando na porta de madrugada,
Olhando o céu sem estrelas paulistano
E as nuvens de névoa de cigarro
E as gracinhas dos jovens em seus grupinhos
E às vezes o barulho do vidro de uma garrafa que quebrava
E era bastante frio,
A gente deixava o isqueiro aceso mais do que precisava
Só para aquecer um pouquinho as mãos
E foi assim que um dia um cara me deu do nada
Uma capa de isqueiro prateada
Só porque passou e me olhou e foi com minha cara
E tenho essa capa de isqueiro até hoje, nunca perdi,
E quando o metrô abria todo mundo comemorava,
Ainda devem comemorar os jovens,
Pelo menos os que não vão embora de Uber,
Nas madrugadas de sábado
Naquela esquina da Paulista
E ainda deve fazer frio
E os isqueiros e a névoa de tabaco ainda devem estar lá,
Mas esse mundo não é mais pra mim,
As conversas não são mais minhas,
O estilo não é mais meu;

E nas salas alguém novo deve sentar exatamente onde eu sentava
E se distrair olhando a mesma vista da quadra e das árvores pela janela
E rabiscar bichinhos nas bordas das folhas do caderno
E às vezes virar para trás e comentar algo com algum colega
E achar alguma professora muito caricata
E ter pena das neuroses dos adultos
E ter a certeza de que com ele vai ser diferente,
De que não vai se render a tudo isso quando crescer,
E talvez não se renda mesmo, vai saber;

E algum moleque talvez brinque às vezes naquele escorregador gigante
Em que eu subia na creche quando era bem menor
E hoje para mim nem parece tão grande assim
E agora o ferro já está um pouco enferrujado, era novinho,
E uma árvore lá perto apodreceu
E a escolinha do clube fechou, só sobrou esse parquinho
Outrora sempre cheio de crianças brincantes,
Agora vazio exceto aos sábados e domingos e feriados;

E alguém está cometendo erros como os que cometi, ou erros outros,
E chorando de amor, ou fazendo alguém chorar de amor,
E gargalhando com suas próprias teorias malucas do mundo
E sendo irresponsável, inconsequente, estúpido ou prepotente
E metendo uma banca que não tem de verdade,
Ou sendo honesto demais em situações inapropriadas;

Alguém, como eu fiz, está ansioso e feliz por sair da casa dos pais
E acha que nada mais vai ser problema depois disso,
E alguém, como eu fiquei, está feliz porque vai casar,
E alguém, como eu fiquei, está feliz porque adotou cães,
E alguém, como eu fiz, está passeando pelo bairro com seu bicho na coleira,
E alguém decidiu aproveitar a noite para comer sushi
E ver um filminho e namorar
E dormir abraçado, pensando que existe uma companhia
Que no meio de tudo que se perdeu, manteve-se,
E que por um lado
É vínculo da memória
Daqueles dias em que se cruzava de ônibus e metrô a capital até a rodoviária
Para pegar um outro ônibus que atravessava o estado até outra cidade
E a vista do metrô na parte aberta era tão bonita,
Com os prédios todos passando velozes,
E a vista da janela do ônibus na rodovia era tão bonita também,
Com as montanhas de mato cheio ao redor,
E a chegada era sempre mais bonita ainda,
Com abraços fortes e beijos
E com os sonhos de morar juntos que se tornaram reais mais tarde,
E que por outro lado
Também é vínculo com o presente,
Com o agora, que está ali no quarto ao lado roncando enquanto escrevo
E que vai estar amanhã comigo planejando a construção da casa nova
E que vai olhar comigo o pôr do sol e comentar dos macaquinhos no quintal
E descobrir comigo as graças e problemas da cidade nova
E rir de piadas e contar historinhas do dia a dia
E colocar a roupa na máquina
E pensar no que vamos fazer para o almoço
E quando será que vamos conseguir viajar;

E tudo parece tão tranquilo e quieto
E no fim de semana quero sentar no sol com meu livro
E com minhas cachorrinhas do lado
E aqui a manhã é coisa maravilhosa
Que dá gosto de ir na varanda ver logo ao acordar,
Mesmo quando se acorda tarde como vou fazer amanhã;

E tem tantos prédios e espaços que ficaram lá,
Desses que frequentei e não vou mais frequentar,
Desses que me iludi que eram um pouquinho meus também,
Mas agora a catraca me barra, não sou mais aluno,
Ou quem morava lá mudou pra outro lugar,
Ou só perdemos contato, ou a livraria faliu e virou outra coisa,
Tantas vozes que eram rotineiras e nunca mais vão ser,
E se às vezes rever seus rostos vou perceber como envelheceram,
Bem? Mal? Não mudou tanto…
Carecas, cabelos grisalhos, rugas, barbas, entradas,
Engordou ou emagreceu,
Mudou o corte, trocou o estilo das roupas, converteu-se,
Agora trabalha no escritório, agora abriu seu negócio e deu super certo,
Ou tá desempregado, que porcaria, vai melhorar,
E tanta gente como eu que achava que ia viver para sempre,
Agora ciente de que não vai,
E que sabia de tudo aos dezessete,
Agora ciente de que não sabe,
E que achava que estava no controle,
Agora ciente de que não está,
E que acreditava que ia fazer de tudo,
Agora ciente de que não fez,
Mas pelo menos deu para fazer alguma coisa,
Uma coisinha de nada, mais que o suficiente,
Eu tinha quinze anos dez anos atrás
E me achava velho demais,
Minha vida estava prestes a começar
E eu queria estar naquela posição de novo,
Totalmente ignorante de tudo que ia viver de maravilhoso e terrível
E crente de que nada demais me esperava pela frente,
Talvez eu esteja nessa exata situação
Agora
Uma vez mais;

Talvez não,
Talvez tudo siga o planejado,
E depois da adolescência eu me assente e as surpresas acabem,
Talvez tudo seja entediante, ou emocionante, ou dê certo, ou não dê,
Talvez a próxima década possa vir a ser
Qualquer coisa;

E talvez eu passe de novo por aquele prédio em Brasília,
Ou aquele sebo, também lá,
Ou aquele túnel fedorento de pedestres,
Ou por uma zebrinha carregando gente,
Ou por aquela esquina do metrô Brigadeiro,
Ou pela estação Tamanduateí,
Ou pela lotérica de Formiga,
Ou por Salvador,
Ou por Pinheiros, naquela rua que levava ao colégio,
Ou pela Vila Madalena, naquele colégio que não tem mais cursos técnicos,
Ou por Sorocaba, naquela praça onde conheci ela,
Ou por aquela praça bonita no Jardim São Paulo,
Ou pela pracinha na frente do colégio do Campo Limpo,
Ou pelo terminal de ônibus de lá, chegava cedinho,
Ou pelo vão do MASP,
Ou Blumenau,
Ou Bambuí,
Ou pela quitinete em que quase morei na Roosevelt,
Ou por algum dos apartamentos em que fui bem-vindo e não sou mais,
Ou por qualquer outro lugar novo
Do qual depois vá me lembrar;

E talvez tudo aconteça de qualquer um dos infinitos jeitos
Que pode vir a acontecer
E tudo que já aconteceu talvez rime de alguma maneira,
Criando melodia, reaparições, novos arranjos,
Ou talvez o ontem continue sempre em silêncio
E sua música seja só emoção com lembrança que vai desaparecer
Com o vindouro sumiço das cabeças que a guardam,
Restando no máximo registros que, sem contexto,
Pouco vão significar;

Tive tantas emoções que não consigo explicar como foram,
Tantas delas restritas a fenômenos em momentos impossíveis de reproduzir,
Parece tão inédito ter vivido certas coisas
E é tão angustiante carregar tanta beleza sozinho
Sem poder reproduzir ou compartilhar,
Ao mesmo tempo que parece tão maravilhoso carregar minhas bagagens,
Que vida essa que tive,
Que vida essa que tivemos, aliás,
Deixamos rastros de alma pelo mundo
E reencontro pedacinhos de nós ao caminhar por onde passamos,
Aconteceu tanta coisa,
Tanta gente, tantos lugares, tantos momentos e fases,
Queria viver tudo de novo
E quero viver agora para depois querer de novo viver tudo de novo,
Quero viver tudo
E tudo bem saber que não posso;

E é só vivendo pra sempre
Que dá pra se morrer em paz.

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