escritos inacabados apenas para fins de alívio

isabella azevedo
Ensaios sobre a loucura
2 min readNov 22, 2020

Mais um domingo de pensamentos e palavras matinais pretensiosamente despretensiosas. O cheiro do almoço de família antecipado da vizinhança me maltrata. Como é desafiador cozinhar só para um. Uma náusea me sinaliza o parto da palavra. Trêmula, e ainda aérea após uma noite de sono agitada com a sensação impregnada de que muita coisa aconteceu, quero aproveitar para tecer estas impressões pessoais sobre um dos assuntos que mais me intrigam no mundo: sonhos.

O que me deixa minimamente angustiada, é viver os mais incríveis absurdos e não poder escrevê-los. Sei que tento obssessivamente atribuir sentido a tudo, mas nesse caso não é, a priori, uma necessidade encontrar uma explicação claríssima, mas ao menos poder me lembrar certos pormenores de importância duvidosa. Muito embora a angústia do inefável contribua para este encantamento, só me lembro da sensação, aquele vestígio estranho que páira um tempo no corpo depois que me levanto. É aí que costuro minha obra. É este hiato da memória que me escancara por breves momentos à minha realidade inconsciente, é quando posso trazer à (meia) luz, pequenos fragmentos daquilo que intimamente sou e ao mesmo tempo quero manter fechado. Tenho lá minhas razões.

Cativada pelo cinema desde nova, mas sempre fazendo descobertas impressionantes, notei o David Lynch em The Elephant Man já na faculdade, e aquele dia, foi como em um sonho: tenho na memória relances e frases perdidas e que, quando as verbalizo, me escapam as certezas de que se realmente aconteceram. Uma beleza fugidia, mas sempre presente. E para além dessa atmosfera onírica, o que me faz sentir em casa, com o trabalho desse cineasta, é sua violência simbólica. É aquilo que me é transferido e que reverbera por um certo período. Aquilo que eu entendo só depois. Eu não sei se Lynch leu Freud, o que é provável, visto o diálogo entre suas direções; mas aonde quero chegar, é nesse estado crepuscular da verbo-imagética, neste conteúdo fragmentado que está para muito além da lógica, de quando fechamos os olhos. Dentro da beleza desse mistério insolúvel, os sonhos guardam nossos tesouros mais obscuros e nos são presenteados em doses homeopáticas disfarçadas de cotidiano.

Sei que a psicanálise tem os sonhos como a via régia para o incosciente, sendo essa também a razão pela qual essa bagunça de símbolos torna tudo mais intrigante dentro de uma análise. Mas acho que essa talvez seja a parte mais pretensiosa da qual tento fugir em vão, já que meu discurso é contornado pela teoria do inconsciente de ponta a ponta e negar isso seria inadmissível. No entanto, me interrogo se é possível uma escrita sem atravessamentos.

(continua depois do próximo sonho louco.)

Sonho Causado Pelo Voo de uma Abelha ao Redor de Uma Romã um Segundo Antes de Acordar — Salvador Dalí

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isabella azevedo
Ensaios sobre a loucura

psicóloga, psicanalista e mestranda no PPGFIL - UFES. contato: azevedom.isabella@gmail.com | @p.iubella | @agalma_psi