ESTEIRAS ROLANTES

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O protagonista da inauguração foi, sem sombra de dúvida, a esteira rolante, que permitia aos clientes ir daqui ali sem ter que se mover, só pondo o corpo sobre a esteira, gentilmente carregados para o destino. Formou-se fila, teve quem saísse da que ia daqui para ali e logo subisse na que vinha dali para cá, tudo para repetir o experimento maravilhoso de não fazer esforço algum.

Apesar dos pesares, não foi isso que acendeu o sinal de alerta em sua cabeça.

Caminhou ao lado da esteira, não por subjugá-la, por compreendê-la inútil, por vê-la enquanto um retrocesso mental e físico, e sim por que havia fila e não queria esperar, sendo, conforme calculou de maneira rápida e sem ajuda de uma calculadora, mais veloz ir andando, num passo curto e cadenciado, do que aguardar para que a esteira e seus motorezinhos potentes o carregassem. Perdeu o frisson, ganhou tempo.

Fez as suas compras, colocou os produtos no carrinho, água, leite, ovo, vagem, cenoura, isso aqui, aquele outro, que não importa, uma compra ordinária e comum para quem precisa se manter vivo.

Também não foi o ato de retirar produtos da prateleira e encher o carrinho que acarretou no estalamento da sua psique.

Quando se pôs a pagar, viu a outra novidade, também querida pelo público, ainda que menos do que as esteiras. Os caixas automáticos. Não era necessário passar pelo clássico procedimento de entregar as compras para uma mulher atrás do balcãozinho com uma pequena esteira, a similaridade, aqui, não é por acaso, dos produtos rolando para serem embalados e tal, e responder às perguntas, CPF, Fidelidade, Pontos, Cadastro, Doação de um real, Comprar a revista, CD promocional, Crédito ou Débito, Sacolas, Quantas, Obrigado, vez ou outra esperar o gerente aparecer quando um produto ou falhou em ser reconhecido pelo leitor óptico ou foi passado erroneamente, seja por erro da mulher do caixa, seja por erro do cliente, que queria antes e agora já não quer mais, as coisas são assim, bastante fluídas. O caixa automático não tinha nada disso. Você tirava seus produtos do carrinho, passava no leitor, escolhia o método de pagamento, tudo por si só, um bicho crescido e autônomo, capaz de operar máquinas complexas, de interagir, de reciprocidade intelectual.

Foram os caixas automáticos que o fizeram enunciar a famosa interjeição Hum, sem abrir a boca, o som que vibra na garganta e, às vezes, dependendo do eu-lírico, faz sair arzinho pelas narinas. Hum. Parou na fila dos caixas automáticos, ainda que a fila dos caixas tradicionais fosse menor.

A curiosidade, aqui, valia mais do que o tempo.

Hum.

A demora era maior, também, do que nos caixas tradicionais, o que explica a fila, aliado ao fator da curiosidade. As pessoas, clientes, reclamavam com altivez do sistema. Não funciona. Não quer funcionar. Olha só. Que diabo. Tomar no cu. Chamavam a mocinha, coitada, que estava ali ao lado para sanar dúvidas, a todo instante, contradizendo o propósito da automação.

Hum, ele repetia.

A mocinha logo foi socorrida por uma colega e viraram duas colegas, auxiliando diretamente cada comprador no sistema automático.

Do it by yourself, a placa sob o escrito CAIXA AUTOMÁTICO dizia, em inglês, assim mesmo. Hum, fez de novo, lendo a placa em inglês. Sequer tinha tradução, o que parecia uma escolha curiosa, em especial para uma cidade interiorana como aquela. Talvez justamente por isso, na perspectiva da Publicidade e Propaganda, fizesse sentido. Hum, fez de novo.

A frase em inglês possuía, por si só, no idioma, ainda que incapaz de ser compreendida no sentido estrito e literal, uma significação para os clientes. A significação, é claro, não era a tradução do DO IT BY YOURSELF, da automação, e sim FAÇA COMO OS CARAS DOS FILMES DE HOLLYWOOD. É uma escolha esperta, Hum.

Chegada à sua vez, leu as instruções, essas em português. Eram bastante claras. Deveria colocar todos os produtos em um caixote de vidro, com uma balança embaixo, antes de começar a passar no leitor óptico. Responder às perguntas padrão, CPF, Cadastro, Fidelidade, Modo de Pagamento. Pegar um produto de cada vez, passar no leitor óptico, verificar se o sistema reconheceu e apareceu na tela adequadamente, e colocar no outro caixote, localizado do outro lado do caixa, também com uma balança embaixo. Algo como a balança da justiça, tira daqui, coloca ali, e vai equilibrando. Passou um por um, o creme de ricota demorou a ser reconhecido, mas após limpar a embalagem com a barra da camisa tudo deu certo. Esperou o sistema carregar. Inseriu o cartão. Digitou a senha. Retirou o comprovante. VOCÊ PODE RETIRAR SEUS PRODUTOS DA BANDEJA, dizia a mensagem. Retirou os produtos. OBRIGADO PELA PREFERÊNCIA, dizia a mensagem. Colocou tudo no carrinho para se dirigir ao seu carro.

Quando se virou, uma pequena multidão estava formada em sua volta. As mocinhas, agora as duas, responsáveis por ajudar os mais dificultosos, tinham os olhos mesmo cheios de lágrimas. Seguravam o choro. O nariz já ranhento. Ele se assustou. Hum. Não é possível, uma senhora de bobs no cabelo disse, trocando o peso do corpo de uma perna para a outra, castigando o salto alto. É pegadinha, um rapaz com camiseta camuflada respondeu, Ele nem é chinês, oriental, essas coisas, pra saber mexer em computador. O gerente se aproximou, vacilando, e o tomou pelo braço, ao mesmo tempo em que ele expressava seu Hum. Falando baixinho, o gerente disse O senhor é o primeiro cliente a conseguir usar o caixa automático sem ajuda, como o senhor conseguiu?

Andando com o gerente ao seu lado, sob os olhares curiosos, o homem soltou mais um Hum, e prosseguiu Eu só segui as instruções.

O gerente parou e o segurou. Encararam-se.

Hahahahahaha, o gerente riu.

Hum?, em outro tom, é evidente.

Não, sério, o gerente insistiu.

Sim, sério, eu só segui as instruções.

O gerente botou no rosto a expressão da seriedade, que consiste em fazer biquinho e enrugar a testa. O senhor está me dizendo que leu as instruções, entendeu as instruções, e assim conseguiu fazer o pagamento?

Sim, eu acho que é para isso que as instruções existem, de maneira geral.

O gerente ficou parado, olhando para o nada, e a multidão começava a se dispersar. As duas mocinhas já estavam ajudando clientes desesperados outra vez.

Ele seguiu para o seu carro e ficou cheio de Hum, Hum, Hum, na cabeça.

*

Uma semana depois, ao voltar no mercado, é impressionante como as compras não duram, apesar do tamanho avantajado que tem e do preço elevado que custam, percebeu que as esteiras ainda eram bem disputadas, apesar de não tão badaladas. Os caixas automáticos e os caixas humanos estavam numa proporção de um para três, mais ou menos.

Hum.

Depois de escolher o produto, em especial alimentos ricos em fibras, foi para os caixas automáticos. A frase em inglês continuava lá. Ao começar o procedimento, viu que as instruções estavam todas alteradas. Nenhuma frase tinha mais do que três palavras, todas eram seguidas por imagens enormes e pequenos vídeos informativos. Um meme era introduzido na tela a cada intervalo, exemplificando o que o consumidor deveria fazer.

As mocinhas praticamente não eram mais requisitadas, e só uma ficou lá para atender a demanda.

Ele, em desespero, largou as compras no primeiro caixote de vidro e saiu correndo. Não importa se a frase está em inglês, português, mandarim. Não importa sequer se a frase está lá, DO IT BY YOURSELF. As palavras estavam mortas e em desuso e logo ninguém teria nome para nada.

*

Três meses depois, um burro vendado virou presidente da república.

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