Eu, (ex-) monge e gay

André D’Assisi
Ensaios sobre a loucura
6 min readSep 9, 2020
Photo by Ben Berwers on Unsplash

Em outubro de 2017, no dia da Virgem de Aparecida, eu, igualmente virgem mas gay, recebi o hábito de postulante num mosteiro católico. Diferente dos budistas de hábito em cores vibrantes (amarelo, vermelho…), o que recebi era negro. A cor é característica dos beneditinos, ordem religiosa fundada pelo italiano Bento de Núrsia no século V e hoje presente no mundo inteiro. Sem a meditação, característica do budismo e do hinduísmo, a vida do monge beneditino é basicamente uma vida de castidade, longas horas de oração cantada e estudos religiosos. Noutras palavras, a vida do beneditino é chata e carente de significado para o homem de hoje. E, mesmo assim, escolhi vivê-la. O motivo?

À época eu tinha uma explicação bem clara em minha consciência para essa doidice. Não era falta de perspectiva profissional, pois tinha acabado de me formar em História e havia alguns concursos públicos atraentes. A decisão devia, assim, ser fruto duma escolha racional por um contato mais profundo com Deus que só uma vida monástica podia me oferecer. Eu gostava de fazer leituras religiosas, era empenhado em orações, gostava de praticar o silêncio (às vezes). Tudo dizia que podia ser um bom monge.

Mas hoje, ao refletir melhor sobre o episódio, noto algo mais. Por detrás da minha piedosa intenção eu era guiado inconscientemente à aquela escolha de vida pelos meus conflitos internos com minha sexualidade e com o sexo de um modo geral, fruto de minhas referências religiosas.

Católico conservador desde a adolescência, eu não aceitava bem minhas tendências sexuais desordenadas, um jeito tosco de católicos assim se referirem a homossexualidade. Consciente de minha condição “anormal”, eu era orientado pelos padres em confissão a não ver os meus sentimentos homoafetivos em si como pecados, por outro lado devia lutar contra os pensamentos que eles geravam — estes sim pecados leves ou graves, como reza o catecismo. Digo, sem modéstia: eu era muito bom em combater esse “bom combate”. Eu me impus um autocontrole sexual muito grande através de rigorosa disciplina sobre meus olhares, pensamentos e palavras, o que quase me enlouqueceu. Mas, no fim, consegui o que desejava: fui durante toda a adolescência um católico de comportamento sexual “exemplar”, passando dos vinte anos virgem e sem beijar homem algum (beijei algumas moças muito respeitosamente, mas sem atração sexual, beijos puros de criancinha…).

O autocontrole sexual perante homens, meu verdadeiro objeto de desejo, era relativamente fácil para mim. Isso graças a uma peculiaridade afetiva minha: embora tivesse atração erótica forte por eles, não fantasiava com o sexo em si, não me atraía o transar. Por isso já pensei até que eu fosse assexual, mas hoje — que não vivo sem sexo — entendo que o meu desinteresse era sintoma dos meus conflitos com minha sexualidade. Conflitos que, sem eu saber direito, me dirigiram à vida monástica um dia.

Sei o quanto parece cômico um jovem gay mal-resolvido decidir pela castidade num ambiente como o mosteiro, habitado só por homens — em sua maioria também gays e com os mesmos conflitos! Porém, eu estava bem confiante com minha decisão de ser monge. Achava que eu seria muito fiel à vocação, primeiramente pelo meu autocontrole sexual e depois porque o ambiente monástico, ao contrário do sugerido pelas belas nádegas do jovem monge Adso no filme “O Nome da Rosa”, é bem pouco erótico. Os religiosos de lá, aliás, são bem diferentes do padre Fábio de Melo, nem tão bonitos nem tão descobertos e decotados . Eles quase sempre usavam roupões longos, largos e pesados chamados de hábitos, falando sempre de coisas chatas e evitando a proximidade física uns dos outros. Todas essas características deviam ser propícias para eu continuar a reclusão da minha sexualidade nas camadas escondidas da minha mente e para aprofundar o meu contato virginal com a religião católica e com o seu deus.

Devia ser, mas não foi. O mosteiro me surpreendeu (ou decepcionou?) bastante depois de ingressar nele. Vi que, embora não fosse repleto de homens sexys, o tema sexo e sexualidade chegava ao cotidiano do claustro com todo seu fervor. Nem mesmo os muros com um metro de largura eram incapazes de impedir sua penetração em meio aos monges.

O sexo contrariava o silêncio da Regra de São Bento aparecendo nos corredores sob formas polêmicas, por boatos escandalosos envolvendo monges e ex-monges transmitidos oralmente de boca em boca — não necessariamente de forma literal. Ouvíamos e repassávamos os casos curiosos de que se devia falar baixinho pelos corredores, longe dos ouvidos tuberculosos do prior (o chefe direto dos monges) e dos seus seguidores mais puristas. Casos de que devia se comentar sorrateiramente, já que nem sabíamos por que comentávamos: se para nos instruir, divertir, ou se para caluniar. Eram histórias dramáticas e estranhas de noviços fazendo sexo oral nos salões à luz do dia, de cartas jogadas duma janela para outra por noviços apaixonados, transas sorrateiras no sótão sombrio, tentativas de pular janela malsucedidas que levaram a acidente do amante rejeitado pelo amado… Acontecimentos dignos de novela que tirariam a credibilidade da instituição caso os fiéis frequentadores do mosteiro tivessem conhecimento deles.

Eu mesmo presenciei o pipocar duma polêmica sexual poucas semanas depois de ter me tornado postulante no mosteiro. Foi o estrondoso vazamento dos nudes do ex-noviço Irmão G. As fotos, postadas por um invasor misterioso na sua página do Facebook, tinham como legenda: Volto à minha vida de monge e puta. Contempladas por monges e monjas cibernéticos do Brasil inteiro, as fotos foram polêmicas principalmente por terem sido tiradas de dentro do quarto do Irmão G no mosteiro, ou seja, quando ainda era noviço, testemunhando para a comunidade monástica a dupla vocação que a legenda dizia ter o rapaz. As fotos foram polêmicas também pela extensão do órgão representado na foto, que todos os mensuradores do mosteiro consideravam desproporcional ao corpo franzino e delicado do mancebo. Eram mais polêmicas, enfim, porque a sua publicação (provavelmente feita por um monge que odiava o ex-noviço), acontecia quando o abade tinha decidido aceitá-lo de volta no mosteiro e após marcada a data de reingresso. Infelizmente, a publicação maliciosa deixou um clima ruim no mosteiro que impediu a volta do ex-noviço. A moral interna dos monges não podia se resignar a receber na comunidade alguém com uma explícita confusão entre duas vocações e de dotes tão descompassados.

Houve uma outra história que é ainda mais curiosa e conheço mais a fundo. Foi a do postulante alojado no quarto vizinho ao Irmão H, um noviço mal falado mosteiro, fama de gay assediador contumaz, de desviador de almas. Mas o postulante, também homossexual e conhecedor das fraquezas humanas, fechou os ouvidos para os boatos tendo em mente que, mesmo se verdadeiros, seria falta de caridade cristã condenar alguém ao ostracismo. Desse modo, cumprindo sua missão cristã, ele se aproximou do irmão H e se tornou o seu único amigo, o que o permitiu ver que não era o tarado que diziam. Mas isso custou a reputação do postulante na comunidade monástica e o noviço algumas vezes percebia o seu incômodo com as calúnias.

Após o almoço do dia do padroeiro do mosteiro — momento de bebedeira dos monges –, o postulante, meio tonto, achou o noviço sozinho no elevador e quis provar que não se afastaria do irmão H, apesar de tudo que diziam sobre os dois e apesar do seu medo. Num ímpeto de coragem, beijou-o antes do elevador se abrir e alguém ver a cena pecaminosa. Então era muito tarde para voltarem atrás e se afastarem. Em poucos dias, o postulante estaria fazendo visitas ao quarto do noviço, desviando o “desviador”. Em poucas semanas, eles estavam pelos corredores falando baixinho de planos para o casamento –realizado de fato em cartório, antes mesmo de um deles se desligar completamente do mosteiro. Em alguns meses, os dois largaram o mosteiro para ficarem definitivamente juntos — e estão até hoje.

A última polêmica é a que gosto mais por ser minha história pessoal com meu companheiro, o tal ex-noviço “tarado”. O resumo feito acima deixa de lado muitas situações interessantes: a minha negação inicial dos sentimentos por ele e busca por transformá-los em amizade casta, o medo dele de me prejudicar com sua má reputação e tentativas de se afastar para meu próprio bem, as nossas cartas trocadas às escondidas por debaixo das portas de nossos quartos (já que era proibido ter celular) … Só que isso é outro texto.

Por enquanto queria só diverti-los observando como minha experiência no mosteiro foi bem diferente da meta traçada. Não foi o lugar de fuga do sexo e da sexualidade: foi do seu encontro. Por pensamentos, palavras, atos e omissões, os sete meses de claustro não me tornaram mais puro, mas sim mais humano, ao me reconciliarem comigo mesmo.

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