Eu poderia escrever para sempre essa história

Luizza Milczanowski
Ensaios sobre a loucura
2 min readMar 17, 2021
Loie Fuller

Eu poderia escrever para sempre essa história. Para sempre, de diferentes formas. Reinventar, incessantemente, a vida. Impregnar a memória, minha criação, com o vislumbre da beleza. Combater o horror com pontos luminosos, dar uma chance à vida de se recriar e transbordar em arte. Um dia, contarei essa história como ela deve ser contada. Mas, no tempo dessa possibilidade — quem sabe em que esquina do futuro — a história estará distante e o que penso da memória tão apagado, tão gasto e amarelado, que será tudo menos uma boa cópia do real.

Como você pôde contar? Como qualquer pessoa pode? A abstração me conforta, porque é repleta de luzes que cintilam, cores que dançam, luminescentes, rodopiantes asas de borboleta cujas ondas se intensificam e impregnam o ar. Quero me afogar no lírico, apesar de suas entranhas embalarem o horror. Como transmitir esse meu salto para pequenos infinitos? Como explicar que a melancolia e a nostalgia são azuis quase vaporosos, que a morte é branca e que visitar um velho lugar conhecido tem o gosto do amarelo?

Eu poderia descrever, com infinitas versões, o movimento das suas pálpebras, o tom aguado da sua íris, o branco da sua esclera, todos os pelos do seu antebraço, o vinco perto dos lábios; poderia contar sobre cada um dos seus dentes, fazer a cartografia da sua arcada. Mas, não é disso que preciso falar quando estou tentando ser fiel a mim mesma. Os seus detalhes não explicam nada. Mesmo que seja tudo que tenho a dizer. Sua voz se perdeu na imensidão de outras vozes. O cheiro doce das amêndoas espalhadas no concreto. Nossos pequenos corpos diáfanos, ainda que translúcidos, vagando no universo vazio, nos escombros do mundo, num grande nada desfocado. Ansiava que pudéssemos existir nesse instante infinito da memória inventada, que só a fantasia — a fantasia apenas — nos sustentasse. Que nossos corpos, já quase transparentes, fossem se desfazendo no ar até a liberdade completa: ser nada além de palavra. Apenas ficção guardada num alfabeto de 26 letras livres e inteiras, sem carne, sem espaço ou tempo. Oh jure jure para mim confiar na alma apenas. Eu quis dizer fantasia, mas dá no mesmo.

Dia 21 de dezembro de 2020 (máquina de escrever)

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