Exceções 2

Léo Borges
Ensaios sobre a loucura
8 min readJul 7, 2019

“Tudo, porém, já estava contaminado pela lacuna deixada pelo marido, que não afirmara o que ela tinha como certo: que era de fato não apenas o amor dele, como o amor da vida dele”

A primeira parte da história pode ser vista neste link:

Aquela tarde fechada, de aspecto tedioso, nada tinha a ver com os raios de sol matinais, até então firmes e instigantes. Enganadores, os feixes luminosos logo se transformaram em pífios brilhos, encobertos por espessas nuvens negras. Mas, mesmo com o cenário desanimador que agora dominava os céus, Sabrina e Amauri resolveram manter o passeio pelo zoológico. Em dado momento, na frente do setor em que estavam alguns jacarés, quem sabe incentivada pelas miúdas gotas de chuva que se precipitavam, a mulher respirou fundo e, então, abordou novamente o sensível assunto de anos atrás.

— Amauri, lembra naquele restaurante quando te perguntei se eu era o amor da sua vida e você disse que precisava de tempo para pensar? Preciso falar…

Era claro que Amauri lembrava. Naquela época, a pergunta veio como um teste de fogo para a mente de respostas exatas do marido. Pedira tempo para pensar, porque não havia como dizer que sim ou que não sem avaliar com acurácia o que aquilo representava. Não queria magoá-la, mas também não poderia conviver com a mentira, pois e se ela não fosse?

— Pois, então. Já que você foi tão verdadeiro, e essa é uma característica sua que me deixa muitas vezes feliz, mas em outras abatida demais, eu preciso te fazer uma outra pergunta. E essa agora, eu sei, é ainda mais complicada que a que fiz dois anos atrás. No tempo que você precisou para me responder se eu era mesmo o amor da sua vida, eu me senti emocionalmente desamparada.

— Sim, mas você sabe que eu não poderia…

— Eu sei, eu sei. Não é sobre você. É sobre mim.

— Como assim?

— Durante aquele tempo, eu… eu… vou ser bem sincera, como você é. Eu tive um caso extraconjugal. Foi rápido. Mas tive. E eu não me sentiria bem em guardar comigo isso para sempre, em ser eu a mentirosa na relação enquanto você tudo pondera para sempre trazer a verdade, sempre me dar a realidade.

Amauri estava desnorteado olhando para a esposa. Como? Por quê? Era sua mente agora quem trabalhava com perguntas, várias, extensas. Um aperto no coração o alcançara. Ele sabia que aquilo tudo que Sabrina estava dizendo havia mesmo ocorrido, já que, com esse assunto, ela não brincava.

“O que ele não poderia afirmar era que os defeitos de Sabrina eram únicos, assim como os atributos que o encantavam, porque ele verdadeiramente não sabia como as outras mulheres eram em suas intimidades”

— Com quem?

— Com o Stefano, dos cachorros.

Stefano era o proprietário da casa ao lado do prédio deles, de onde vinham os latidos insuportáveis e que se tornou um problema a mais para a relação. Amauri não entendeu aquilo. Para ele, a mulher detestava o dono daqueles cães justamente porque era quem, podendo fazer, nada fazia para combater a inconveniência.

— Mas… Sabrina… como?

— Eu desci lá algumas vezes para falar com ele, para reclamar dos latidos. Numa das vezes, ele me disse: “eu não queria também que ele latisse tanto, mas é que ele perdeu sua companheira”. Havia um quarto cão, uma cadela, dócil, que morreu envenenada. Alguém do nosso prédio jogou comida com veneno no quintal dele e a única a comer foi ela, coitada. Aquilo me deixou muito abalada. E eu sei que errei. Me perdoa, por favor!

“Dormir já era uma fuga. Mais fuga da mulher e seu semblante credor do que dos barulhos do cão ou do trabalho maçante”

Amauri estava sem palavras. Uma avalanche de informações de uma vez só desconfigurou parcialmente sua capacidade de raciocínio. Olhou para frente e viu um dos jacarés encarando-o também, com a boca semi-aberta. Parecia feroz, mas talvez fosse só uma impressão. Dentre tantos outros ali naquele lago artificial, poderia ser a exceção e ser tão calmo que se permitia o olhar piedoso com os visitantes. Já Amauri, perdido em sentimentos, viu que tinha de dizer alguma coisa, dar seu parecer sobre a bomba que Sabrina divulgara.

— Por que você não me contou isso antes?

— Porque achei que pudesse conviver com isso, que pudesse digerir essa história sem ter que expor nossa relação a mais esse desgaste.

— Desgaste? Sabrina, por favor… eu disse que você era o amor da minha vida. Onde está o desgaste nisso? Você chorou ao telefone e até comemoramos quando cheguei em casa naquele dia. Eu acredito em você, mas estou muito ferido. Não imaginei… e agora?

— E agora sou eu que te faço a nova pergunta: ainda sou o amor da sua vida?

Com fatos novos, e claramente desfavoráveis, Amauri teria novamente de pensar. Contudo, pedir mais tempo para isso seria quase como que assinar o divórcio, ou pior, dar uma resposta afirmativa já com a dúvida sobre se outra traição acontecera nesse meio tempo. Amauri, encharcado com a chuva que caía, deu alguns passos e se posicionou em frente onde estavam as serpentes. Uma delas, que se enroscava calmamente num caule, parecia tão mansa quanto o outro réptil. A língua bífida, projetada repetidamente — e seu venal simbolismo bíblico — não somaram mais desconforto em Amauri, que, nesse momento, apenas tentava reorganizar os pensamentos para entender Sabrina.

“No dia seguinte Amauri foi trabalhar pensando em Sabrina mais do que quando a pergunta ainda não existia. Estaria ela, depois do questionamento fatal, se transformando no amor da sua vida? E antes? Não era? E quem era?”

— Amauri, foi você que jogou a comida envenenada para aquela cadela?

— Eu ia fazer isso, Sabrina, principalmente porque queria te ver bem. Eu sabia que aqueles latidos estavam te tirando a paz.

— O que me tirou a paz de verdade foi você não me dizer se eu era o amor da sua vida! Você matou aquele cachorro por mero remorso. Quis descontar num ser inofensivo… olhe esses animais, veja se eles têm culpa de alguma coisa!

— Você me revela uma traição e agora fala sobre o meu remorso? A única culpa que carrego é de não ter te respondido naquele restaurante. E demorei meses porque fui atrás da melhor resposta. Eu fui verdadeiro contigo…

— Eu também estou sendo.

— Logo com o Stefano, dos cachorros… isso que me escapa a compreensão.

— Ele não teve culpa pelos latidos.

— Mas e em relação a ter tido você? Nem nisso ele teve culpa?

— Não fale assim!

— Estou falando a verdade.

— Chega de verdades! Não quero mais verdades! Não aguento mais tantas verdades! Chega!

“Estava ainda tentando encontrar um ponto que equilibrasse sua decisão, algo que não maculasse a busca e nem propiciasse um engodo eterno com o qual teriam de conviver, uma desconfiança que estaria presente da manhã à noite, nas horas calmas e, principalmente, nas de crise”

— Então, por que você sempre quer saber se você é o amor da minha vida? Olha, Sabrina, eu tenho agora todos os motivos do mundo para dizer que não, que você não é, que deixou de ser, não sei. Curiosamente você seria a grande exceção, pois, de todas, você poderia ser a única que eu genuinamente amei e, agora, a única que eu deixaria de ter como meu amor legítimo, pois mesmo nesse mar de verdades, você não foi paciente, fez suas perguntas e não foi leal na espera pelas minhas respostas. Eu disse que você era, falei isso, demorei meses, tudo bem, mas disse que você era o amor da minha vida, e fui o único homem, disso estou certo, que deu essa resposta com a maior das certezas, pois pensei, refleti muito , analisei, levei em consideração todos os critérios. Mas agora preciso pensar… tudo precisa ser revisto…

Amauri continuou andando sem olhar para a esposa. A chuva caía cada vez mais forte e só havia eles nos acessos que davam aos animais maiores. Ele olhava para os pandas, que davam cambalhotas inocentes. Por um breve momento desejou estar no lugar de um deles, brincando, sem ter de dar respostas, sem ter de fingir raiva, sem estar refém das verdades. Já Sabrina não teria mais como cobrar nada de seu esposo, muito embora já tivesse feito isso com a nova pergunta. Por que, afinal de contas, era tão importante saber se, de fato, era seu grande amor? Que tipo de insegurança maligna era aquela que a deixara, inclusive, emocionalmente vulnerável a ponto de se entregar a uma outra pessoa? Sabrina chorou, mas a chuva encobria sua tristeza sem muita dificuldade. Um dos pandas a olhou fixamente. Parecia com pena.

— Você ainda fala com o Stefano? Mantém contato com ele?

— Não, Amauri, de jeito nenhum. Não foi um caso que mantive, foi uma queda, um momento. Estava abatida por te ver distante, por não saber se você realmente me amava, se estava comigo por conveniência, e o fato de descobrir que foi você quem matou um dos cachorros me fez criar um elo com esse cara.

— Eu não matei cachorro nenhum, Sabrina! Não fui eu quem jogou o veneno! Eu ia, mas não fiz. Vi três cães lá que, por incrível que pareça, na hora estavam quietos, então não seria covarde a ponto de matar qualquer um. Nem sabia que havia um quarto cão, não o vi. Desisti da idiotice e joguei fora a carne.

“Nem sabia que havia um quarto cão, não o vi”. Nesse momento, passou pela cabeça de Sabrina que tudo não passara de mentira, de uma farsa bem engendrada por Stefano para reverter a situação de descontentamento entre os vizinhos e ainda por cima, conquistá-la, mesmo que só por instantes. O remorso se multiplicou a ponto de chorar tanto que precisou ser amparada por Amauri. Os ursos se aproximaram do muro, curiosos com a situação.

— Eu disse para ele… que amava meu marido, que você, Amauri, é o amor da minha vida… e disse isso, Amauri, sem precisar pensar, sem precisar de tempo para calcular, refletir ou contabilizar. Eu virei e disse para o Stefano! Eu disse!

Amauri a abraçou enquanto ouvia umas araras fazendo grande alvoroço no viveiro para tentar escapar da chuva, que engrossava cada vez mais. O choro da mulher unido aos outros barulhos anestesiaram qualquer indício de raiva que ele ainda pudesse ter. Para quê tanto barulho? Tantas perguntas? Por quê tanta culpa e tanta vontade de empurrá-la para alguém? Por que essa necessidade de ser mais, de se ter o maior amor ou de ser elogiado por dizer uma verdade? Lembrou de Emília e Consuelo, as colegas de trabalho e os elogios que eles três recebiam como se bons funcionários fossem. E agora Stefano e a história, quem sabe inventada, de um cão que morreu. Entre tantas mentiras e verdades, Amauri compreendeu que a traição de Sabrina realmente lhe havia sido libertadora. Ele precisara daquilo. Afinal, o fato de cogitar dar fim a um cão por causa de seus latidos seria realmente a prova definitiva de que ele não amava mesmo ninguém além de seu próprio ego.

Aquela que foi a sua maior dor, entretanto, foi também a ponte para a sua redenção.

“Assim como o cachorro ruidoso do vizinho teve uma sobrevida, ele ponderou sobre se seu casamento também escaparia assim, com um golpe de sorte, com uma encenação bem feita”

Macacos brincavam ruidosamente, pulando em cipós e pequenos galhos, acompanhando à distância o casal indo embora. Amauri se sentiu novamente uma exceção dentre todos os homens. Não por ser o único homem do mundo a perdoar a mulher que o traiu, não por ser o homem a respeitar a inexatidão existencial dos animais e nem muito menos por ser o único a ver mérito em dissolver culpas explícitas sem gritaria, mas por se certificar de que o amor que carregava por aquela mulher ia mesmo muito além de todas as respostas.

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