Exceções

Léo Borges
Ensaios sobre a loucura
8 min readMar 29, 2017
Cenas Urbanas — A. E. Chagas

Foi num jantar qualquer, num restaurante sem alma e numa data em que nada aniversariava que Amauri teve de encarar a pergunta de sua esposa: “eu sou o amor da sua vida?”. Já que tinha como fundamento o não mentir, assim como o não magoar, ele disse que precisava pensar, pois havia sido pego de surpresa. Ela, é claro, não gostou, pois esperava uma resposta instantânea.

— Eu não posso afirmar que você é o amor da minha vida sem refletir seriamente sobre isso, Sabrina. São bilhões de mulheres no mundo…

A sinceridade deixou Sabrina um tanto desconcertada. Ela sabia, porém, que Amauri era assim: sempre comprometido com a verdade! No matrimônio mais ainda, já que ela própria havia dito, bem lá no início, que não iria tolerar mentiras, engodos, invencionices, joguinhos e sarcasmos. A resposta poderia demorar um pouco a vir, mas acreditou que viria como ela queria, com o “é”.

O jantar acabou e a resposta não veio. Amenizaram o momento inconclusivo conversando sobre outras coisas, família, contas, trabalho. Amauri até comentou sobre as duas colegas que compartilhavam sua sala, Emília e Consuelo (segundo os homens da empresa, eram habilidosas e solícitas), e que o trio era constantemente incensado por sua suposta competência. Tudo, porém, já estava contaminado pela lacuna deixada pelo marido, que não afirmara o que, em tese, ela tinha como certo: que era de fato não apenas o amor dele, como o amor da vida dele (algo significativamente bem maior).

A noite foi de Amauri com uma desavença na cabeça. Ficou tão absorto pela suposta complexidade do assunto que nem mesmo deu atenção para os latidos do cão da casa do vizinho lá de baixo. Moravam no sexto andar, mas o ladrar atingia seu cômodo com uma potência tal que era como se na cozinha o animal estivesse. “Amor da minha vida”, “amor da minha vida”. Seria aquela mulher nua sob os lençóis, num sono intranquilo, falsamente leve, cujo ranger de dentes inconsciente lhe concedia um perfil ameaçador, o amor de sua vida?

No dia seguinte Amauri foi trabalhar pensando em Sabrina mais do que quando a pergunta ainda não existia. Estaria ela, depois do questionamento fatal, se transformando no amor da sua vida? E antes? Não era? E quem era? E alguém tinha realmente de ser? Não poderia simplesmente namorar, noivar, e casar com alguém que não fosse tudo isso? Não bastava ser uma pessoa querida, tinha de ser algo imenso? Pensou na resposta que havia dado: “são bilhões de mulheres no mundo”. Parecia idiotice, mas era verdade. O ideal seria separar em grupos de milhões todas as mulheres do mundo para, assim, avaliar, uma a uma, suas peculiaridades e definir quem, então, seria o seu verdadeiro amor. Essa ação, além de demandar décadas, poderia se revelar totalmente infrutífera, pois tantos detalhes pediriam muita convivência.

Sabrina bebia pouco e fumava menos ainda; tinha alguma beleza (estaria numa média mundial aceitável), sabia se expressar bem, mas não gostava de cozinhar. Ela amava Che Guevara, mas ele detestava. Ambos gostavam de gorgonzola, mas só ela curtia praias. Ópera e rock tinham espaço no som do carro, mas, vez por outra, a mulher cismava de ouvir o Bonde das Lagartixas, o que o irritava bastante. No cômputo geral, porém, ela era uma ótima companhia. E, caso não fosse o seu grande amor — algo até provável diante da magnitude de possibilidades — haveria ali uma exceção condescendente.

O que ele não poderia afirmar era que os defeitos de Sabrina eram únicos, assim como os atributos que o encantavam, porque ele verdadeiramente não sabia como as outras mulheres eram em suas intimidades. Namorou com duas antes dela, mas nenhuma se mostrou interessada em ser o ápice do seu amor. Nada disso, por certo, era garantia de que eram melhores ou piores que Sabrina. Finlandesas poderiam amar climas frios, assim como ele, mas poderiam estender essa frieza também para seus temperamentos. Algumas cubanas saboreavam bons charutos e isso, para Amauri tinha mais glamour que cigarros ordinários; entretanto, poderiam pecar no amor excessivo que deveriam nutrir pelo Ernesto (vai saber). As italianas entenderiam a arte de preparar ótimas pizzas e deveriam amar queijos, mas isso, com o tempo, não as deixaria obesas? Argelinas, lituanas, marroquinas, australianas, russas, nepalesas, guatemaltecas, argentinas. Todas com suas qualidades e defeitos. A exceção era Sabrina, cujas qualidades sobrepujaram os defeitos — ou, pelo menos, muitos deles. Do contrário, pensou, ambos não teriam se casado.

Na sala de trabalho estavam lá, como sempre, as suas duas colegas: Emília e Consuelo, ambas casadas. Seriam os maridos delas os amores de suas vidas? Amauri quis saber, mas não quis perguntar. Naquela sala ele era a exceção como homem e bem poderia ser também a exceção como alguém que não sabia dimensionar o amor. Ele notou que teria de tirar isso da cabeça, essa tormenta que passava a lhe angustiar e o fazia crer que ele era o único em tudo: o que não conseguia se envolver com o fervor que todos esperavam, que desconhecia a mulher de sua vida e que não sabia dar respostas objetivas. Naquele dia ele notou que representava bem a figura masculina estereotipada, isolada e pragmática. A regra parecia ser a de todos plenos, exceto o Amauri.

Amauri voltou desolado. Sabrina iria querer saber se ele pensou, se refletiu com seriedade na pergunta e se já possuía a resposta. Ele sabia que precisava de mais tempo, de mais estudo. Estava ainda tentando encontrar um ponto que equilibrasse sua decisão, algo que não maculasse a busca e nem propiciasse um engodo eterno com o qual teriam de conviver, uma desconfiança que estaria presente da manhã à noite, nas horas calmas e, principalmente, nas de crise, porque seria exatamente nesses momentos que ela usaria a questão como arma: “você está ofendendo o amor da sua vida…”.

— Esse cachorro não para de latir, você precisa fazer alguma coisa…

Menos mal que dessa vez o cão ajudou. Os latidos fizeram-na esquecer que Amauri ainda era devedor, que havia uma pendência naquele quarto, que a união não seria mais a mesma se ele não se posicionasse. O que importava é que a sentença viesse, que ele rapidamente fizesse uma estimativa comportamental de todas as espécimes femininas, de todos os continentes, e decretasse: “você é” ou “você não é” — de preferência a primeira. Para dar um acalanto paliativo, o homem abriu a janela com expressão determinada e tentou mais uma vez enfrentar à distância o inimigo canino por entre as árvores. Cuspiu no breu. Como eco apenas o au au au interminável e feroz.

Dormir já era uma fuga. Mais fuga da mulher e seu semblante credor do que dos barulhos do cão ou do trabalho maçante. Acordou com os já costumeiros latidos e com Sabrina questionando o porquê de ele nada ter feito para prover silêncio. “Está um inferno isso!”. E foi naquele dia, quando saía para o trabalho, que Amauri pensou em dar um fim no bicho. Seria rápido. E seria indolor. Alguém teria de pagar a conta por sua postura indecisa e o cão servia bem a esse propósito. Não sabia dizer se Sabrina era o seu grande amor, mas o assassinato, certamente, esfriaria aquela panela de pressão. Misturou chumbinho num pedaço de bife e se espreitou entre o muro do prédio e a casa. Quando subiu e teve o contato visual com o pátio, se espantou! Embora ele soubesse que os latidos vinham sempre de somente um cachorro, havia no pátio três cães! No momento, todos estavam silentes, mas era certo que o agitador estava ali, camuflado… o insolente, o que compunha a exceção.

O único cão que mereceria ser morto era o brabo e ele não sabia exatamente qual deles era o tal. E se deixasse ali aquela refeição envenenada, mataria a todos, ou seja, uma injustiça danada! Desfez-se do bife numa lixeira próxima e seguiu para o trabalho, consternado. Assim como o cachorro ruidoso do vizinho teve uma sobrevida, ele ponderou sobre se seu casamento também escaparia assim, com um golpe de sorte, com uma encenação bem feita, se poderia sobreviver sem sucumbir a uma dúvida tão tóxica quanto tola.

Semanas se passaram. Meses sem nenhuma resposta. No trabalho, os teclados eram pressionados por seus dedos de forma alheia e mecânica, sem ânimo, onde planilhas contábeis que brotavam na tela — que nunca lhe envolveram de fato — agora é que perdiam de vez a importância. Na mente de Amauri, os latidos já se misturavam com os ruídos do casamento, as falhas na comunicação, reclamações e uivos que ganhavam fôlego com o seu silêncio.

Enquanto isso, encostado à porta, outro colega trazia, entre sorrisos, o já manjado “nessa sala só tem bons funcionários”. Mais um elogio dito em bom som para ser degustado pelos três, algo que claramente sabotava sua autenticidade, mas que, mesmo assim, era prazeroso justamente por esse caráter abrangente: sem brechas para exceções. Amauri, que a esta altura já desconfiava de qualquer afirmação e afagos no ego, temia que a única coisa que lhe restava, a sua razão, antes tão sólida, enfim, o abandonasse de vez.

Poderia se dizer que Emília era de beleza mediana e que Consuelo era simpática. Isso, contudo, não significava muito, porque mesmo que fossem grandes beldades, o apetite de Amauri não se alvoroçava a ponto de validá-las como possíveis concorrentes de Sabrina. No campo das inseguranças ele tinha como certeza que cabelos vivos, queixos delicados e olhos com design felinos não determinavam o amor e nem muito menos o amor supremo. Isto é, ambas estavam fora da lista de competição. Mas ainda faltavam as outras bilhões de mulheres e seus bons dotes, como o de saber cozinhar, dirigir, cuidar de crianças, fazer sexo bem feito e não oprimir com perguntas inadequadas quando o maior desafio é o de eliminar — ou se adequar — a um barulho.

O que faltava também era a resposta sobre se as colegas eram eram muito amadas — ele precisava desse parâmetro. Foi quando descobriu que sim, e com muito mais amor do que ele poderia imaginar. Poderiam gostar dos maridos, mas também amavam entre si: Emília e Consuelo mantinham um caso homossexual extraconjugal secreto. Era por isso que sempre rechaçavam frases cínicas do tipo “nessa sala só tem bons funcionários”. Amauri estivera incluído inadvertidamente nesse jogo de sedução, cumprindo um papel involuntário, onde todos estavam abarcados, porque o objetivo era a conquista via paparico generalizado. Integrou uma unanimidade enganosa.

Metódico e inflexível, ele poderia mesmo não ser um bom funcionário, uma exceção diante de lésbicas competentíssimas. De qualquer modo, ele, naquela sala, também era a exceção não apenas por ser o único homem, mas o único que a ninguém bajulava; não apenas por ser o único heterossexual, mas o único que nunca dissimulava, e, certamente, não o único fiel no mundo, mas aquele que entendia que essa característica não somente tinha importância capital em relacionamentos como também se revelava como a grande resposta, a derradeira, a que ele ardentemente precisava. Amauri não pensou mais, ligou imediatamente para Sabrina e, assim que ela atendeu, disse:

— Você é o amor da minha vida.

E ouviu o choro emocionado da esposa com o cão ao fundo latindo sem parar.

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