Instrumental

Léo Borges
Ensaios sobre a loucura
2 min readOct 20, 2019

Queria descobrir que vibração era aquela. Sem voz, sem refrão, algo indescritível a quem ainda tinha pouca sensibilidade para belos sons. Vinha de uma esquina, por vezes aparecia perto de casa. Seria um coleiro, um rouxinol? Não repetia a sequência, não era um pássaro. Uma orquestra escondida em algum ponto do bairro? Era afinada demais para ser de tão simples explicação. Tentaram me convencer que poderia ser um pequeno surto de solidão, já que nada escutavam. Certamente estavam equivocados. O som era muito claro, puro, fluido, praticamente colorido. Eu não estava disposto a provar que havia verdade no meu entendimento, apenas queria encontrar o maestro e conhecer os equipamentos invisíveis que possuía.

Poderia surgir à noite, mas também pela manhã. Não era raro vir em dias chuvosos, o que não significava que também não me sorrisse sob sol. Havia violinos, gaitas, sax. Como uma praça tão pequena como aquela poderia comportar essa gama de instrumentos? Como essas poesias poderiam flutuar por aí ser sem que nada fosse percebido? Em madrugadas impontuais eu sonhava com aquele perfume sonoro, ondas que me levavam a acreditar que tudo aquilo era mais que somente carícias auditivas. Havia algo por trás.

O horizonte, cúmplice desse som, me deu indícios. Pela manhã, notas doces, vivas, sopros de intensidade, cabelos ao vento; à tarde, as pegadas na areia que se mexiam com a brisa, poderosos segredos que se revelavam em acordes, algum agir que através de simples respirar gerava genuínas composições. Tudo tão suave e cômodo, um deleite que passaria como delírio se não fosse minha convicção: todo aquele mistério realmente escondia o tom visceral, um corpo que acolhia essa ode, mais energia que marasmo, hino que escapava da carne e se tornava instrumental.

Marquei as ruas por onde passei e a vi. Olhava pelos reflexos dos vidros e ela estava lá, não era interpretação. Estava também no corredor do meu trabalho, perto de casa. Em minha mente todo o tempo. A clave de sua cintura era aquilo que cativava como canto de maior refino, a elegância no andar, olhos em mi maior. Sua beleza se harmonizava em formato outro, nada de corpos comuns, pois para quê ser assim tão explícito? Uma canção única, talvez amor que falava a poucos ouvidos. Ela como a própria obra de arte que mesmo Vivaldi ou Mozart teriam orgulho em criar. Não sei se me notou em algum momento, e era indiferente isso, já que sua silhueta era muito abstrata para estabelecer sincronias tão exatas. Como concepção artística verdadeira, sintonizava frequências que permitiam uma vida mais leve, bastando apenas desenvolver as habilidades necessárias para senti-la e, assim, admirá-la.

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