Jaula

Rosane Mathias
Ensaios sobre a loucura
2 min readOct 7, 2016

Senti um arrepio na espinha, seguido de outro e de outro. Eles se revezavam com a forte expiração que saía das narinas do Zé encostadas em meu pescoço. Até pareciam ter o encaixe perfeito. Inspira. Relaxa. Expira. Arrepia. Continuamos assim até o despertador programado para tirá-lo de mim, tocar.

Não é novidade perdê-lo ao final de cada fim de semana, mas acontece que eu, simplesmente me negava a me preparar para a sua partida, por mais recorrente que ela fosse. Todos os domingos ao meio-dia eu deixava programado o despertador, mesmo quando eu estava sozinha. Tocava, eu parava tudo, respirava fundo, e me entregava aos seus carinhos na minha imaginação. Mas, não dessa vez, agora era uma despedida de verdade para mais uma de suas viagens. Oh, santa Deusa, porque não ouvi a minha mãe?! Até parece que a ouço dizer: “Porque ninguém ouve!”. Devo estar louca.

Mesmo com o tocar do despertador, o Zé continuou ali respirando em meu pescoço, estávamos tão próximos — se isso fosse possível, diria que respirávamos o mesmo ar. Alguns minutos depois, levantou. Estranhei. Seguiu em direção à cozinha e de lá gritou para que eu não me levantasse. Voltou com uma bandeja, lindas flores enfeitavam cada canto dela, no centro torradas e suco de jabuticaba. Meu suco favorito. Ele vestido apenas do suor da noite passada trazia entre os lábios um cartão. Amava cartões.

Era um cartão de aniversário. Aniversário. Aniversário? Meu aniversário. Já era três de abril e, eu não sabia? Sim, era três de abril e diferentemente de mim, meu marido não esqueceu. Comemos nosso café da manhã, quase não conseguia mastigar de tanto sorrir, a felicidade não cabia em mim, até me pegava gargalhando entre uma mordida e outra. Até o mundo real chamar a nossa atenção, eram 13h30 quando o despertador tocou mais uma vez, Zezinho estava atrasado para a sua viagem e, em um pulo, já estava vestido, acenando um adeus distante enquanto trancava a porta. A porta do quarto.

Corri para a pequena janela, no alto da parede, um pequeno círculo de vidro temperado e de figuras geométricas desenhadas, tantos detalhes que quase não permitia a passagem de luz. Abri uma pequena fresta, demorou até meus olhos se habituarem ao sol, pude ver apenas você dobrando a rua,

— Até a volta, meu amor.

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