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Mário-alpha

Aldo Damasceno
Ensaios sobre a loucura
3 min readJul 31, 2020

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No quinto toque a secretária entrou em cena.

Bom dia, boa tarde e boa noite para quem liga, aqui é o Mário. Deixe seu recado após o BIP.”

Mário ouviu o telefone, mas optou por não atender. Sabia quem estava ligando e saboreou os toques antes de ouvir a voz de Juçara. Sorriu de forma triste e deu um gole na cerveja barata.

“Mário, aqui é Juçara! Me liga quando puder, por favor!”, dizia a voz macia e bastante ansiosa do outro lado da linha, a bairros de distância em um conjugado de aluguel caro. A mulher morena com cabelos cacheados e volumosos desligou suspirando, imaginando que, dados os acontecimentos anteriores, o homem com quem ela esperava conversar não desejaria vê-la outra vez mesmo com todo aquele charme e doçura.

Em casa, o indivíduo que recusava-se a estabelecer contato bebia desejando o esquecimento e alguma paz, ainda que todos nós saibamos que a impermanência é uma constante por vezes desagradável. Talvez a ressaca lhe concedesse um tempo de amnésia alcoólica, mas logo logo todas as memórias voltariam como uma grande carreta de decepção e amargura em sua direção.

Ambos, Juçara e Mário, detinham a verdade a respeito do ocorrido. Mas verdade mesmo, imparcial, inalterável, inquestionável, só existe uma, sempre, da qual ninguém nunca tem certeza. O que cada um tinha era uma perspectiva diante de uma situação. Nada mais. Antes disso, só conheciam a si mesmos e como vieram a ser de tal jeito.

Muitas das nossas percepções não são pontuais, pelo menos a maior parte tem uma história que vem de muito antes. E os sujeitos que faziam parte daquele casal tinham origens completamente diferentes. Por que então possuiriam perspectivas idênticas?

A morena cacheada queria explicar o que havia acontecido, que não era nada do que o namorado pensava. Para Mário não poderia existir percepção além da dele, e qualquer outra não seria nada mais do que uma tentativa estapafúrdia, um disparate, que visava, na verdade, colocar em xeque os seus sentidos, seus sentimentos e até mesmo sua história. Mário era um homem de vigor, de fibra, de posição, imponente como as grandes lápides gélidas que ficam à frente de túmulos dos que morrem em vida sem abrirem suas mentes, corações e sem se colocarem à disposição da dúvida que, obviamente, também poria à prova suas benditas e sagradas convicções machistas, retrógradas e arcaicas. Mário não cederia a exposições dadas por uma mulher que, embora bela e dotada de atributos que um homem noventista e ultrapassado como o próprio gostava, acabou se rendendo a valores modernosos e cheios dos considerados requintes de veadagem, frescura e devassidão? Juçara precisaria mudar muito a sua forma de pensar, de ser, de viver e até de perceber tudo ao seu redor se quisesse usufruir dos benefícios da presença de um autêntico homem com agá, não maiúsculo, mas muito másculo. Isto, é claro, caso não tivesse se metido a flertar com o tal de Uílson, um suburbano metido a poeta e violeiro, com jeito de transante, e que muito provavelmente não era homem o suficiente, porque violão e poesia, numa coisa só não tinha nada a ver com masculinidade, menos ainda com o clube dos machões super-viris.

E lá ficou Mário. Com suas convicções, com sua cerveja e a secretária eletrônica, antiquada o bastante para os padrões tecnológicos da atualidade tal qual seu próprio dono.

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