Manchas

Ivan Nery Cardoso
Ensaios sobre a loucura
5 min readOct 7, 2021

Uma tarde de janeiro, logo após o almoço, meu marido sacou um bilhete dobrado do bolso e o deslizou pela madeira recém desnuda, em minha direção. Abri. Dizia estou querendo te deixar, naquela letra grande e gorda dele, ocupando quase todo o espaço. Não dizia que estava me deixando, mas que estava querendo me deixar. Gerundismo. Pelos vincos no papel e pelo aspecto da tinta azul da caneta, soube que não o tinha escrito naquela manhã, talvez nem na manhã passada. Duas manhãs atrás? É possível, mas eu não tinha como dizer, assim, à primeira vista. Desde quando?, escrevi no verso do bilhete com uma caneta que estava esquecida ao lado do telefone. Uma caneta de tinta azul, também. Dobrei o papel e o devolvi da mesma forma que me foi entregue. Enquanto ele escrevia sua resposta, terminei de dobrar a toalha de mesa e a coloquei sobre uma cadeira, de onde a levaria para lavar e evitar que as manchas do molho de tomate se fixassem. Mas isso tudo dependia de como essa conversa continuaria. Meu marido demorou para escrever. Olhava para o teto, como se a resposta estivesse ali. Mastigava a caneta. A mesma caneta que eu usara. Uma caneta que, na verdade, eu não sabia de onde viera. Apenas estava ali, deitada sobre o bloco de anotações ao lado do telefone. Não era muito usada. Não recebíamos muitas ligações. Talvez estivesse ali desde muito antes do bloco de anotações, ou até mesmo do telefone. A cômoda também não era nossa, veio junto do apartamento. Talvez tivéssemos escolhido colocar o telefone e o bloco ali, naquele lugar, pois ali já existiam uma cômoda e uma caneta de tinta azul, que é melhor para anotações rápidas, números de telefones, nomes de empresas, de consultórios médicos, de pessoas desconhecidas. Canetas pretas são melhores para textos mais longos, deslizam melhor no papel e demoram mais para se cansar com as muitas voltas de letras cursivas compondo uma carta, um poema, um conto, um relatório. Canetas vermelhas, por sua vez, são melhores para corrigir, para traçar círculos ao redor de palavras, sublinhar sílabas, cortar frases, fazer tiques ao longo das margens de folhas de ofício. Demoram para acabar, por serem usadas para tarefas tão curtas. Canetas pretas terminam mais rápido. Costumo abrir uma nova a cada duas semanas, e sempre as compro em caixas de trinta, quarenta, cinquenta. Gosto de usá-las até o fim, de ver a tinta acabando no meio de uma palavra, deixando incompleta uma frase. O traço vai enfraquecendo, enfraquecendo, até que desaparece em um movimento inútil da mão que não consegue parar até que a palavra tenha sido completamente tatuada na folha. Com ou sem tinta. Canetas azuis também demoram para acabar. Por isso essa caneta estava aqui, sendo mastigada pelo meu marido enquanto pensava, enquanto escrevia algo no papel. Terminou de escrever. O bilhete deslizou pela mesa na minha direção. Dizia: desde o dia em que te conheci. Então porque não foi?, perguntei no pouco espaço que ainda havia disponível. Quis completar com: porque ficou?, mas não coube. Ele recebeu o papel, desdobrou-o e recebeu minha pergunta. Me pediu um instante, se levantou, buscou uma nova folha do bloco de anotações ao lado do telefone e retornou para seu lugar na mesa. Escreveu algo, parou, pensou, e escreveu mais um pouco. Dobrou a folha e a deslizou pela mesa. Abri, mas antes de ler peguei o bilhete antigo, o registro da nossa nossa conversa escrita até então. Sim, eram folhas do mesmo bloco. Quiçá escritas com a mesma caneta. Em dias separados. Não sei, ele dizia, mas penso nisso todo dia, e agora decidi que é hora de você saber. Pois vá, escrevi no verso. Não quero ir, ele disse, mas também não quero ficar. Só quero te deixar, completou. Sublinhei o que tinha acabado de escrever e devolvi o bilhete. Seu suspiro foi o primeiro som que produziu desde o arroto que encerrou nossa refeição. Me perguntei como seria sua voz. Será que ele gostaria de conhecer a minha também? Provavelmente não. Nem me olhou nos olhos quando se levantou, pegou o chapéu atrás da porta e saiu. Sem as chaves, notei. Estavam na vasilha da antessala, junto das minhas, junto das chaves do carro, junto das chaves de outros lugares que não abríamos com frequência, cadeados, cofres, gavetas de escrivaninhas, chaves que talvez não abrissem mais nada, pois suas fechaduras já não existiam mais, ou não nos pertenciam mais, ou não sabíamos onde estavam. Joguei todas elas no lixo, salvei apenas a da porta da frente. A minha chave, não a dele. Busquei um hotel, disquei o número. Dois toques. Atenderam dizendo o nome do lugar. Diante do meu silêncio, souberam o que se passava, e recitaram o endereço, pausadamente. Anotei com a caneta azul mordiscada e desliguei. Arranquei a folha, dobrei-a bem dobrada, forçando os vincos com a ponta do dedo, e o guardei no bolso. Uma nova folha se mostrava agora no bloco, em toda a sua nudez pérfida. Risquei a folha. Risquei mais. Mais. Mais, até cobri-la por inteiro de tinta azul. Depois cobri o verso. Virei outra folha e repeti a ação, rasurando-a por completo. Depois mais uma. Mais uma, e mais outra e o bloco inteiro. Peguei os bilhetes da conversa com meu, agora, ex-marido. Nossas palavras não passavam de rabiscos sobre o papel branco. Cobri-as com mais manchas, até desaparecerem, afogadas em tinta azul. Quando terminaram todas as folhas, risquei a parede. Risquei até o risco se cansar, ir minguando e desistir por falta de tinta, por falta de voz para gritar. E então risquei um pouco mais, para me certificar de que algo mais se machucasse. Que cor enojante era esse azul. Arrumei o bloco, agora todo azulado, ao lado do telefone. Deixei a caneta deitada sobre ele. Não, não era o certo. Deitei-a a exatos noventa graus, logo acima do bloco, onde talvez estivesse quando nos mudamos para cá. Talvez não. Os próximos inquilinos receberiam uma cômoda e um telefone, mas teriam que comprar uma caneta caso quisessem anotar recados. Um bloco também. É o jeito. Peguei um guarda-chuva e um casaco do cabideiro. Saí. Tranquei a porta e chutei a chave para dentro do apartamento. Lembrei da toalha de mesa manchada de molho de tomate. Mas só lembrei. Não era mais problema meu.

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