Mordi a língua

Permita-me regredir

Gabriel Muney
Ensaios sobre a loucura
6 min readJun 17, 2022

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Olhos à mesa, Remedios Varo (1911)

Que agonia é começar um texto. É sempre assim: um desespero. Desde já sei, lá no fundo, a ideia exata a qual quero passar. O primeiro parágrafo tem de ser sempre uma prévia interessante do que será lido daqui pra frente. O gostinho do quero mais tem que amargar logo agora. Deito com computador sob o colo e não consigo raciocinar. Eis o obstáculo: meu ventilador.

Ultra silencioso, é o que diz na caixa. Comprei e trouxe para casa embebido numa ilusão de ter noites de sono completamente tranquilas. Tamanha decepção nunca tive. Se tive, não me lembro. Faz barulho. Muito barulho. Eu tinha outro ventilador no quarto, este menor e silencioso, mas que não ventilava. Falhava em seu propósito primordial.

Onde moro é quente, especialmente dentro do meu quarto, este que, quando a noite e de porta fechada, assemelha-se bastante a uma caixa de fósforos. Isto porque, para o bem ou para o mal, cultivo desde sempre o hábito desconfiado de apenas conseguir dormir quando a porta está muito bem trancada — com dois giros de chave, muito obrigado!

Esclarecida a necessidade de um ventilador que não me deixe morrer de calor, tive de comprar um novo. Este, mais robusto, ventila e muito. Mês de junho então, que faz menos calor ao ponto de quase fazer frio, é uma beleza.

A questão do barulho é outra. Eu preciso escrever. Escrever sobre outra coisa. Mas o ventilador, que me jurou calar a boca, canta sem parar no meu ouvido. Durante alguns minutos ele murmura algo inintendível. Noutros momentos, vira-se diretamente para mim, me fazendo ameaças — como quem diz: eu vou gritar, eu vou gritar.

São três meses convivendo neste relacionamento doentio, quando, por alguma razão, seja por acúmulo de poeira, ou por muito tempo ligado, ele evoluiu de meras ameaças para ações concretas. Grita, grita. Não só reclama e murmura, também dá de ombros e recusa-se a girar. Ás vezes até simula umas paradas repentinas, quase me pedindo o papel e a caneta para escrever sua própria carta de suicídio.

Parece até que ele quer chamar minha atenção. Talvez eu olhe demais para as telas e isso o incomode, ou, ainda, sendo bem pessimista, deva ser só um defeito de fábrica, não é nada pessoal. Pessimista porque, se assim for, então perdi alguns minutos escrevendo sobre este ventilador que tanto me provoca.

Pela manhã, momentos em que tenho mais dificuldade em pegar no sono, é que a coisa esquenta entre nós. Faz uns sete dias que o vadio atrapalha meus sonhos lá por entre às 8h e 9h, num grunhido mais ou menos assim: INHUENHIAMONHEINAM BEEBEE KANHOENHIOENHEM. O que ele quer dizer com isso, eu não sei. Sei que acordo e dou algumas travesseiradas até que ele se cale. E agredi-lo é quase sempre bastante eficaz. Passa pela minha cabeça que eu não o entendo mas que ele deve me entender muito bem; ou, pelo menos essa linguagem, a do incômodo, ele já deve conhecer.

Quando ainda estava no processo de montagem das peças, muito feliz, passeando entre os vales das máquinas, com os gentis operários e acompanhado de seus amigos exaustores, não imaginava ter de conviver com uma criatura tão supérflua como eu. Que saudades deve sentir dos tempos de fábrica.

Para poupá-lo, talvez eu resgate o antigo ventilador e reate o nosso relacionamento. Não sei se me aceitará de volta. Dois anos juntos até que, na cara de pau, eu o substitui por outro maior, mais barulhento e abusivo. Ainda o uso, é verdade. Mas é que ele foi rebaixado a ventilador de sala; e todos sabemos que ventilador de sala tem uma importância muito inferior ao ventilador de quarto.

Não há sequer uma mínima chance que me faça voltar à loja e comprar, assim, sem mais nem menos, um outro ventilador. Entenda, já estou calejado. Lhe parece uma boa ideia aceitar em minha casa outro alguém para me fazer promessas que não serão cumpridas?, e além disso, como poderei largá-lo assim, de uma hora para outra? Precisamos ter uma séria conversa. Essa não é uma forma madura de encerrar as coisas. Aqui neste quarto nós valorizamos o diálogo!

Sei que o ideal mesmo é instalar um ar condicionado. Que sonho, hein. O geladinho dia e noite. Barulhinho mínimo. Mas é muita areia para o meu caminhãozinho. A conta de luz então, hã! Seria menos traumático um assalto à mão armada.

É que, de alguma forma, me acostumei com os grunhidos e manias esquisitas deste meu companheiro; e vou me desculpando, pois eu acredito, sim, que quando é para ser, então será. Isso aprendi ainda criança com os DVDs da Xuxa. Não são os astrólogos que dizem que todos que passam por sua vida têm algo a ensinar?, ou estes são os coachs?

O texto que eu, ingênuo, previamente pensei em escrever antes de disparar a falar sobre ventiladores, começaria da seguinte forma:

Eu tenho muita dificuldade em escrever diretamente sobre mim. Escrevo melhor, e consequentemente escrevo mais, quando o calo aperta pela perspectiva de outra pessoa. Quem sabe daí explique-se a minha fixação com a ficção.

Meus personagens também falam sobre mim, exceto quando falam sobre outras pessoas. Meus narradores também fazem digressões com minhas ideias, exceto quando fazem digressões sobre ideias ultrapassadas e que não são minhas.

Mas agora, numa reanálise, percebo que, particularmente, me causa bastante incômodo que um texto se sobrecarregue com a palavra eu logo no início do primeiro parágrafo. O eu será sempre muito bem-vindo enquanto não for sobre mim a quem ele se refere.

Como posso, nesta posição, fazer qualquer julgamento se sei que tudo é poluído com minha identidade, ainda que não seja? Como posso aceitar meu ventilador do jeito que ele é, se ele não me ouve? Como posso me sujeitar a escrever um texto sobre meu cotidiano se tenho cem seguidores, e entre estes, apenas dois leem o que escrevo com curiosidade? E essa palavra, não eu, mas cotidiano, já não está extremamente ultrapassada?

Me lembro de dormir durante muitos dias, sem ventilador e sem janelas, num apartamento fedorento e abafado carinhosamente apelidado de “apertamento”, no centro de Arapiraca. Era como estar alheio ao tempo. Lá dentro, eu não conhecia esta ciência inútil aos sergipanos que são os estudos meteorológicos. Pois se fazia sol, eu não me bronzeava. Se chovia, eu não ouvia o barulho delicioso. Tinha um cômodo apenas, junto a um banheiro minúsculo, que ficava embaixo das escadas que davam para o térreo. Exatamente: era no subterrâneo, e o vaso sanitário se situava propriamente abaixo da escada, bem onde as pessoas pisavam, subiam e desciam, iam e voltavam.

Superado o medo de que a escada caísse sob a minha cabeça quando eu estivesse me depilando no chuveiro, convivi bem naquele espaço por algum tempo. Quando recordo, me parece uma época muito mais feliz do que realmente foi. Diga-se de passagem, que a preocupação com o calor não me enchia a cabeça tanto quanto hoje. A memória sempre cumprirá o seu papel em adocicar o que tem gosto de dipirona.

Que pessoa frígida eu me tornei. Para minha mínima satisfação, controlo o clima no meu quarto e escrevo sobre pessoas que não existem em situações que nunca aconteceram para me sentir melhor. Se funciona? Ora, que pergunta mais tosca! É óbvio que não.

Já viu algum escritor feliz? Não podem ser levados em conta: escritores de livros de autoajuda, escritores cristãos, escritores budistas, escritores astrólogos, escritores de manuais de eletrodomésticos, escritores de bulas de remédios de qualquer tarja, escritores de contratos ou escritores com menos de 14 anos.

Para não me prolongar (mais), repito agora: que agonia é terminar um texto. Se eu passei a ideia exata que eu queria passar? Não, não passei. Me estiquei e nem sei como terminar. Percebo que poderia escrever sem parar qualquer uma dessas informações inúteis sobre o eu e o cotidiano embrulhados no mesmo pacote de laço vermelho. Duas palavras tão medonhas. Termino citando um amigo que leu este texto antes que tivesse um parágrafo final.

Nem tudo precisa de um plot, boiola! — João Alexandre

Mesmo que eu ainda esteja achando tudo isso aqui muito sem sal para ser publicado, ele continua:

Os textos leves precisam ser leves para que os textos pesados sejam ainda mais pesados. — João Alexandre

E não é que é verdade? Só um gênio diria algo parecido com isto!

Estes textos que refletem sobre o ato de escrever estarão numa lista separada dos outros contos e crônicas publicados por aqui. É uma forma de organizar melhor as gavetas. Se gostou, visita meu perfil para ler meus outros escritos. ;)

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