não é louco quem quer
sobre tirar os sapatos antes de pular
não é louco quem quer, já dizia seu analista enquanto caminhava em direção à porta, amputando sua frase impensada. à espera do elevador, eis que se dá conta de que havia esquecido o diário sobre as mantas do divã. páginas cujos conteúdos rodeavam uma loucura inventada; deixara ali a evidência transferencial de seu abismo. era, de alguma forma, um desejo quase obsceno de entregar todos os seus ditos àquele tal suposto saber que a fisgava. a velha mania de documentar a vida se fazia notar pelos pormenores; o caderninho espesso de intervenções entre as páginas, guardava também uma ferida na alma contornada em grafite 4b, clipes de papel e palavras arriscadas. como dói despencar do mundo, escrevia. como é difícil se afogar semanalmente com horário marcado e ser, no último respiro, salva pelas próprias estratagemas inconscientes. se o analista lhe jogava as boias ou apenas apontava a direção da corrente, não importava. era ali que aprendia a nadar. suas narrativas clareavam a impressão crua de que algo desvanecia internamente, mantendo a loucura sempre imposta ao devaneio. não é louco quem quer. e ela não queria. desejante demais para ceder à sanidade, sua mais esbaforida tarefa era bater os braços em direção ao mesmo fluxo da corrente que a realizava. avançando firme em direção ao desejo antes oculto, que agora acena timidamente mostrando sua face entre as sombras.
enquanto tardava o elevador, lá estava ele, com o caderno vermelho nas mãos, fitando-a pacientemente: — você esqueceu o seu diário; sorria sutil entre os dentes. aquele analista, de idade avançada, lhe devolvia compreensivo aquele genuíno gesto confidente de um endereçamento de amor com a deliberada conclusão de que a loucura é privilégio de outros poucos.
