Na estrada

Julia Caramés
Ensaios sobre a loucura
3 min readAug 8, 2018
Misty Umbrella — Leonid Afremov

Quando Santo Antônio bateu na porta, eu já estava de saída. Eu o esperei por muitos anos e já havia o dado por esquecido. Sua aparição me causou confusão, pensei que ainda vivia no topo do guarda-roupa, envolvido em seu manto feito de fita de cetim cor-de-rosa, em seu habitat natural de descanço.

“Não podemos esquecer de alimentar nossos corações, mocinha. É como dar de comer aos bichos”, ele disse com seus olhos atenciosos e cheios de ironia. Seu aviso foi claro e sereno como uma penumbra de inverno. Não tive resposta, ainda estamos nos dias de outono, que ora chovem, ora deixam o sol queimar. As memórias me parecem agora uma cópia fiel desses mesmos dias.

Dessa vez eu dei de ouvidos e saí pela porta da frente. Estou de partida, vou seguir meu rumo, mesmo sem saber muito bem pra onde ir. A estrada é muito comprida e eu já não tenho tanta pressa. O pouco de bagagem que eu levo nas mãos, é suficiente para eu descansar tranquila. Eu ando pelo mundo e ando só. Ultimamente tenho sido a minha melhor companhia.

Sigo em direção ao que se faz incerto, se sustenta na delicadeza da passagem, e nasce e morre todos os dias. Se transforma nos embaraços e voa pelos céus como quem não tem hora para voltar. Percebo pedaços que antes eu não podia ver. Sinto o frio da água que cai sobre meus ombros e o calor da que escorre pelos meus olhos. Sei que já fui feliz em outro lugar. Um lugar que não era só meu. Sei que posso sentir mais ainda enquanto caminhar sozinha. Meu nome é espaço e minha casa pode ser qualquer uma.

Onde antes eu costumava ir, já não existe mais. O tempo sábio e dono de toda a razão que habita os trópicos, vai apagando e afastando lentamente o que não deveria mais estar comigo. É uma renúncia, eu confesso. Mas, dependo das minhas próprias pernas para andar e elas já cansadas agora me guiam pelo som. Um canto sem voz, diferente de tudo o que eu conheço, de tudo o que eu já ouvi por aí.

Percebo no meio do caminho que perdi minhas chaves. Talvez não seja possível voltar. Talvez seja uma viagem só de ida. Impeço o desespero de se instalar e despacho o mesmo, como quem tira poeira de casaco antigo. Quem caminha com verdade não precisa voltar para uma casa velha, empoeirada e desabitada, só para se sentir seguro. O frio já não me assusta mais.

Olhar para trás com o coração cheio de amor e uma certa calma entusiasmada nas mãos, me mostrou que sempre vai ter um pouco de mim por onde eu passar. Cada página é um capítulo e cada quadro um único momento. Momentos não voltam e é por isso que eu caminho sempre em frente. Ainda que eu não tenha para onde ir, levo comigo minha caixinha de histórias encantadas. Prometo contar uma em cada parada. Essa estrada não tem fim.

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Julia Caramés
Ensaios sobre a loucura

Se veio aqui procurar alguma coisa me dá a mão que eu tô procurando também