O Buraco.

Onde tudo se perde, onde tudo está.

Wellington M.
Ensaios sobre a loucura
6 min readJan 27, 2022

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Magritte, 1958.

Sempre houve o Buraco. Ele sempre esteve por aí, entre as coisas.

As pessoas costumavam atirar coisas no Buraco. E elas ainda costumam, mas muitas vezes elas nem sabem que o fazem. E que coisas estranhas começam a acontecer caso você perceba o Buraco, e mesmo com isso continue a atirar coisas nele. Ao atirar coisas conscientemente no Buraco, ele as regurgita de volta. E isso é ruim. O Buraco não aceita as coisas facilmente.

Houve momentos da vida de várias pessoas em que o Buraco foi decisivo, e elas não o sabem. Justamente isso que faz com que esses momentos sejam significativos, porque no Buraco, nada em si mesmo é significativo. Lá só jaz aquilo que é atirado, e tudo que é atirado, jaz no Buraco. E ponto. O ciclo se fecha.

O Buraco me apareceu primeiro em meu apartamento, na sala de estar. Foi como um ponto cego por muito tempo, mas aos poucos ele se mostrava como tangencia absoluta de minha visão, ao ponto de eu não conseguir mais encarar as pessoas que me visitavam, e só encará-lo em sua profundidade escura. Foi dessa maneira que ele se tornou claro para mim: em sua profundidade e escuridão.

Eu trabalho como gerente, e com isso eu organizo pessoas. Não necessariamente pessoas, mas as prateleiras de um depósito. Mas as pessoas que eu organizo é que ordenam as prateleiras do depósito. O depósito é preenchido com caixas, e dentro dessas caixas tem coisas. Essas coisas são o tipo de coisas que eu tenho em minha sala de estar, em torno do Buraco.

Meu trabalho no geral é fácil, pois eu não encosto nas caixas; quem encosta nelas são as outras pessoas que dependem de mim. Essas pessoas só encostam nas caixas, e não nas coisas dentro da caixa. Pois isso é proibido, estritamente proibido. E por isso mesmo que tudo se mantêm em ordem: pelos funcionários que não podem encostar nas coisas de dentro das caixas.

Estou tomando café. Eu o tomo por um Buraco biface: o bocal da xícara, e pelos extremos de meus lábios. Ao perceber isso, não me assusto. Eu já conheço a ubiquidade do Buraco faz tempo, desde aquela vez, em minha sala de estar, e daquela outra, no espelho do meu banheiro.

É possível viver com o Buraco.

Você precisa amar as coisas, sendo esse o critério para o Buraco não te perturbar. Mas veja: você precisa realmente amar as coisas.

Eu nunca amei as coisas, por exemplo. Gosto de tê-las ao meu redor, e de organizá-las. Minha casa é parecida com meu depósito, mas nela eu encostava de fato nas coisas, e não nas caixas. As caixas ainda eram encostadas apenas pelos funcionários, aqueles outros funcionários, não os meus. As coisas eram boas de se encostar e ter, e principalmente de organizar, mas definitivamente eu não as amava.

Quando eu percebi o Buraco na minha sala de estar, foi peculiar.

Eu conversava com um casal de amigos sobre geladeiras. Eu estava lhes contando alguns detalhes que só quem lida de perto sabia, sobre marcas, modelos. Lembro que começou quando eu errei uma sílaba, e meu pensamento se perdeu. Nisso, esqueci o que estava falando e notei ele bem no meio do cômodo.

Sua visão foi intensamente particular. E seguindo o silêncio, vi que nenhuma das minhas coisas estava dentro dele. Todas estavam em volta, como se formassem um enquadramento de sua profundidade negra e nula. Isso me deixou absolutamente surpreso, mas nada nervoso ou desesperado. Foi uma daquelas surpresas que ocorrem quando você sem querer se depara com algo óbvio que sempre esteve ali, mas que você nunca havia se voltado diretamente. Eu ainda não sabia se isso era bom, ou não.

Quando você percebe o Buraco, geralmente você não pensa muito nele. Afinal, ele é um Buraco. Ele é oco, e óbvio. E em tudo que é lugar existem Buracos. Os quadros de sua casa só estão nas paredes, por causa de Buracos. Sua privada e seu ralo são Buracos. Seus copos e xícaras, são Buracos. Suas panelas, bule, chaleira, formas… Tudo são espécies de Buracos.

Então a vida segue, e você ignora o Buraco. Inclusive é possível que você já o tenha percebido, e tenha esquecido dele. Isso é comum e cotidiano. Hoje, mais tarde, após terminar de escrever, provavelmente não lembrarei dele.

Mas lá ele permanece sempre: um Buraco no meio das coisas. E nem sempre é fácil lidar com isso.

Infelizmente conheci pessoas que cederam e caíram nele.

Geralmente elas o subestimavam, atiravam coisas nele… Veja, muitas dessas pessoas que caíram também amavam coisas, então aquele critério não é infalível, então cuidado. Elas tentaram colocar muitas coisas em cima dele, e não em volta, para que assim escondessem ele de si mesmos. O que é uma tolice. Mas é uma tolice fácil de se cometer, e aqui lhe explico.

Você não pode intencionalmente querer esquecer o Buraco, ou tirá-lo de sua frente. Porque assim, ele apenas se tornará maior e maior. Você precisa calmamente aceitar sua presença eterna, que assim ele irá desaparecer de sua percepção das coisas. Ele ainda estará ali, mas não vai se sobrepor as coisas mesmas. É esse o erro de quem caí nele. Eles não percebem que é um paradoxo de vertigem.

Assim tudo que você colocar nele, não some. Apenas vai se tornar parte dele, indissociável. E uma vez que isso acontece, se torna progressivo. Porque você vai perdendo as coisas para ele.

E no fim, só lhe resta se atirar nele. Porque nada mais sobrou a se fazer: você pôs tudo nele.

Quando se aprende a viver com o Buraco, coisas boas acontecem.

Uns anos depois de perceber ele, conheci Amanda. Amanda é uma artista plástica. Ela faz esculturas e pinta quadros, e também trabalha com cerâmicas.

Nos dias em que conheci ela e nos relacionamos, fui tomado de um intenso sentimento peculiar e de ansiedade. O sentimento peculiar era de semelhança com a proximidade com o Buraco, aquela vertigem estranha que sempre está ali. Estando com ela eu sentia algo bem semelhante, só que dessa vez era acompanhado de uma verdadeira angústia, a qual era sutil de certa forma, mas presente.

Esse sentimento, virou-se do avesso quando a beijei, depois de todos aqueles encontros. Encostar nela deixou de ser esbarro e passou a ser uma espécie de derramamento. A angústia havia se transmutado em desejo, e esse desejo era infinito, escapando a pele, e caindo dentro dela. Da face. De seu Buraco, em sua absoluta profundidade.

No dia seguinte, foi que eu percebi com maior clareza.

Ao lavar meu rosto de manhã cedo, eu notei: nele havia um Buraco. Ele estava lá também, sempre esteve. Eu sabia. Quando o vi entre as coisas, eu sabia que ele deveria jazer aqui também, mas isso era algo que eu não estava disposto a interrogar na época.

Agora, ele não cessa de estar ali. E eu o noto na face da Amanda também, o vazio que seu rosto representa. Nosso beijo, é o encontro biface de um Buraco, que nem tomar café.

Lhe escrevo isso, agora, de frente para o Buraco.

Eu o observo em sua profundidade infinita.

É estranho vê-lo de frente, porque ele se escapa facilmente. Eu o contemplo em ingenuidade, pois já sou familiar dele; faz anos que o vi pela primeira vez dessa maneira mais direta.

Diariamente me coloco em sua frente e fico encarando ele, de tal forma que foi ele que me ensinou grande parte do que lhe disse aqui sobre o Buraco. Minha fonte principal é ele, o próprio. Ele não é humano para ter me dito, mas se quiser entender dessa maneira, é possível. Mas não espere som ou reação da parte dele, pois essencialmente ele não faz nada disso, e na verdade, ele não faz nada no geral.

É sempre nós que fazemos alguma coisa com ele.

Amanda me ensinou que é possível construir coisas com o Buraco.

Seu trabalho com cerâmica era justamente em torno disso, do Buraco. Ela traçava a argila com suas mãos enquanto ela girava, e aos poucos seus dedos davam sentido e consistência para ela, lhe retiravam o mero bruto do resíduo, e enformavam o Buraco em vaso. Ela me dizia:

“É como acariciar o vazio”.

O vazio é o centro do Buraco, que é inacessível ao tato. Mesmo sua visão é a constatação da ausência, da afirmação ensurdecedora de um ; mas apesar disso o vazio pode ser ouvido ao colocar uma concha em sua orelha. Ele acontece de qualquer forma.

Por isso os vasos de cerâmica de Amanda eram sempre vazios: era proibido colocar coisas dentro deles.

Isso me levou a pensar que talvez dentro das caixas de meu depósito só houvesse vazio; me fazendo então indagar de o porque de meus funcionários não poderem encostar nos conteúdos dela. Eu ponderava sobre isso enquanto lembrava de que a ordem dependia desse não contato.

Ao fim, isso me pareceu terrível: pedi demissão.

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