o caso deles

Alice
Ensaios sobre a loucura
2 min readAug 26, 2020

eu fico julgando as pessoas mas a verdade é que eu sou muito séria. minha mãe falou isso pra mim esses dias e vai ser uma dessas coisas que Freud explica mas não resolve, sabe? eu vou estar gagá pensando “eu sou muito séria, minha mãe já dizia”.

eu não sei muito bem o que ela quis dizer com isso, e a força dessas palavras — que sempre rebatem em mim de um jeito mais profundo do que na média das pessoas — já me fez esquecer também o contexto em que ela as colocou. tinha a ver com as angústias. sempre tem.

os pais têm essa mania de achar que tudo que a gente faz seria melhor se eles estivessem fazendo no nosso lugar. oras! é claro. eles viveram pelo menos uns 20 anos a mais, e eu não tiro o mérito de que as suas escolhas seriam “melhores” caso tivessem a minha idade hoje.

eu to na fase de renegar os pais. de achar que tudo deles é um absurdo, questiono muito e finjo amar pouco, só pra quando eles estiverem velhinhos eu poder chorar de culpa e compensar o tempo que “perdi” com algum recurso financeiro ou emocional.

mas, eis que sou muito séria, séria demais, vivendo minha vida e apanhando as consequências das escolhas que fiz. eis que tenho em mim essa coisa de fazer um tweet virar crônica e achar que sou artista e que enquanto não faço nada, posso, no entanto, fazer bordado, sopas e uns experimentos na minha própria pele. não vou dizer que tenho todos os sonhos do mundo, porque além de clichê, meu sonho virou filho único.

a independência é coisa que se conquista, mas que nos vinte e poucos anos, ela e a vida, as circunstâncias resolvem brincar de um pique-pega, esconde. cada hora tá com um. perco e recupero. entre idas e vindas, altos e baixos, muitas ondas, a gente vive perdendo qualquer resquício de independência conquistada.

então a gente se desdobra e faz da cartilha da moral e dos bons costumes nosso guia até que ela não nos sirva mais, afinal, eu não pedi pra nascer. e aí nos revoltamos, tomamos um porre, fumamos, brigamos. eu sempre brigo. aliás, a minha mãe deve ter querido dizer isso também. acho que ela disse nas entrelinhas: você é muito séria (e briga demais).

novos baianos, que até ontem eram apenas conhecidos estranhos para mim, hoje tocou no aleatório do Spotify na voz do Silva e me tocou: eu sou o caso deles. eu sou.

a minha velha é louca por mim

só porque eu sou assim

o meu pai, por sua vez

se liga na minha

tirar de minha mãe o direito de dizer que ela me criou (ou faltou criar) séria demais é o mesmo que tirar de mim o direito de culpá-los por tudo o que eu queira. e talvez o único erro deles de fato tenha sido me deixar escolher a linha da terapia que eu faço.

mas sigo sendo caso deles, o caso de rir e de chorar (eu acho).

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Alice
Ensaios sobre a loucura

just a small town girl living and writing in a lonely world